terça-feira, 3 de outubro de 2017

ANTOLOGIA VIRTUAL CONTO Prêmio Literário da AMULMIG de Prosa e Poesia, edição 2017.







O conteúdo dos textos aqui publicados é de inteira responsabilidade dos autores, inclusive em caso de plágio;qualquer semelhança com a realidade,em prosa ou em verso, é mera coincidência.

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O EDITAL


CONCURSO LITERÁRIO DA

ACADEMIA MUNICIPALISTA DE LETRAS DE MINAS GERAIS Edital 2017

Acham-se abertas as inscrições para o Prêmio Literário da AMULMIG de Prosa e Poesia

  1. Prazo: de 11 de abril de 2017 a 30 de junho de 2017, valendo a data de postagem do carimbo dos Correios.
  2. Tema: o tema é livre para as categorias.
  3. Os candidatos poderão concorrer apenas com um trabalho em cada categoria, conto e poema, em língua portuguesa.
  4. Os contos deverão ser de, no máximo, três laudas.
  5. Os poemas deverão ser de, no máximo, 30 linhas.
  6. Os trabalhos deverão ser digitados em Times/Arial, tamanho 12, espaço 1,5 – em três vias e enviados para a

Secretária Geral da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais

Acadêmica Maria Lúcia de Godoy Pereira

Rua Rio de Janeiro, 909 – apt 206 - Centro

Cep 30160-041 – Belo Horizonte/MG


  1. Os trabalhos deverão ser enviados sob pseudônimo. Os dados do autor – nome, endereço completo, e-mail e telefone do autor – deverão ser enviados em envelope separado e lacrado, com o título do trabalho e pseudônimo por fora.
Todos os itens deverão ser respeitados, caso contrário o trabalho será desclassificado.
Haverá uma Comissão Julgadora composta de três escritores para cada categoria, designados pela diretoria da academia.
Serão entregues medalhas e diplomas aos nove primeiros lugares de cada categoria: três Vencedores, três Menções Honrosas e três Menções Especiais.
Os textos classificados serão publicados em antologia virtual no site do Jornal da Academia. Aos classificados será pedido o envio dos textos via e-mail para a publicação.
Os prêmios serão entregues em Sessão Solene, no dia 03 de outubro de 2017, às 15 horas, na Rua Agripa de Vasconcelos, 81 – Mangabeiras, Belo Horizonte/MG.
Mais informações  com  a  Acadêmica Maria Lúcia de Godoy Pereira,  através do e-mail godoymalu@bol.com.br
Publicado no blog da Academia http://amulmig-bh.blogspot.com.br/2017/04/normal-0-21-false-false-false-pt-br-x.html


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CÉSAR PEREIRA VANUCCI, Presidente da Amulmig


Cesar Vanucci é jornalista, escritor, advogado, professor. Exerceu, entre outras, as seguintes funções: Superintendente Geral do Sistema Fiemg; diretor regional do IEL; diretor da Rede Minas de Televisão; presidente da Universidade do Trabalho MG; Secretário Municipal de Abastecimento de BH; Ouvidor Geral da Prefeitura de Belo Horizonte; Assistente no Senado Federal, Assembleia Legislativa MG e Câmara Municipal BH; Assessor da Vice-presidência da República. Na condição de executivo do Sesiminas, liderou a equipe que idealizou, estruturou e lançou a famosa “Ação Global”.
Em Uberaba, onde residiu até 1965, fundou e foi presidente da União Estudantil Uberabense (UEU), foi um dos fundadores da Academia de Letras do Triângulo Mineiro, presidiu o I e II Festivais Universitários de Arte, foi Professor de Técnica de Redação e Publicidade no primeiro curso superior de jornalismo instituído em Minas Gerais (Faculdade de Ciências e Letras São Thomas de Aquino), fundou e dirigiu o Colégio São Judas Tadeu, integrou como representante da Circunscrição de Ensino do Triângulo Mineiro o primeiro Grupo de Trabalho constituído pelo Ministério da Educação (1962-1964) visando a implantação de um sistema de rádio e televisão educativos.
É colaborador permanente de dezenas de órgãos de imprensa. Membro do Lions Clube, coordena há duas décadas as festividades de celebração em Minas da “Semana Mundial do Serviço Leonistico”. É o atual presidente da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais (Amulmig) e da Academia Mineira de Leonismo.
É cidadão honorário de mais de uma dezena de municípios mineiros, BH entre eles. Foi agraciado com numerosos títulos honoríficos nas áreas pública e privada.
Autor de milhares de artigos publicados ao longo de meio século, mais de duzentas conferências proferidas, algumas no exterior. Lançou os seguintes títulos: “Um certo Dom”; “José Alencar – missão cumprida”; “A família, seu valor e seus problemas na sociedade contemporânea”; “Um homem chamado Chico Motta”, “Realismo Fantástico”.


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Comissão de Julgamento
Coordenação Angela Togeiro
Julgadores: João Bosco de Castro, Malluh Praxedes, Tânia Mara Costa Leite.


João Bosco de Castro (1947  ̶  ), Oficial de Polícia Ostensiva e Preservação da Ordem Pública, é professor de Línguas e Literaturas Românicas. Poeta, romancista e contista, camonólogo, ensaísta e crítico literário, policiólogo, inscultor, heraldista e tupinólogo. Publicou: O Mandachuva, Manual de Redação da Polícia Militar de Minas Gerais, O Estouro do Casulo, Glorioso Tormentório, dentre outros. Detentor de mais de quatrocentos prêmios literários e epistêmicos, dentre os quais IMAGEM POÉTICA DA MATERNIDADE (pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Belo Horizonte, em 1970), A VIDA DA PALAVRA (pela Academia Brasileira de Letras, em 2003), HENRIQUETA LISBOA  DE POESIA (pela Arcádia de Minas Gerais, em 2004). Ocupa a Cadeira 329 da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais, cujo Patrono é José d’Avó Gontijo, como representante de Bom Despacho-MG.



Tânia Mara Costa Leite,  natural de Belo Horizonte.
Psicóloga Organizacional e do Trabalho pela UFMG.
Especialista em Segurança do Trabalho, e Ergonomia;
Especialista em Dinâmica de Grupos e Jogos empresariais.
Especialista em Percepção e Diagnóstico pela UFV - Universidade Federal de Viçosa.
Pós graduada em Marketing pela FGV – Fundação Getúlio Vargas.
Pós graduada em Engenharia de Produção – Universidade Federal de Santa Catarina.
Professora em cursos de pós graduação do Pitágoras, Cefet, Fumec, Una e Fundação Pedro Leopoldo.
Dramaturga pela Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, autora de diversas peças de teatro empresarial.
Autora dos livros “Os sete pecados capitais nas Organizações”, “Ordem e Sucesso”,
e coautora do livro “Vivências – uma aprendizagem efetiva”.
Consultora de Empresas na área de Gestão Organizacional.
Diretora Executiva da Plêiades Desenvolvimento de Pessoas.




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Malluh Praxedes

Natural de Pará de Minas, Malluh Praxedes é escritora, jornalista e produtora cultural.
Publicou 16 livros autorais: poemas, contos, crônicas e um quase romance.
Com o poema “Mea Culpa” recebeu o Prêmio Alfonsina Storni, na 9ª. Fiesta de La Poesia Latinoamericana, organizada pela Fundação Givré, em Buenos Aires, Argentina.
É membro da Academia de Letras de Pará de Minas.
Como cronista, publica semanalmente no jornal Diário, de Pará de Minas e no site Vitrine Literária, desde 2005.
A menstruação da ascensorista. 1993
Em 2016, o escritor José Roberto Pereira publicou o livro “A música de Minas: nas anotações de Malluh” – aprovado pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura – sobre sua atuação como jornalista e produtora cultural.

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TRABALHOS CLASSIFICADOS



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Rascunhos©

1º lugar
RENATA FONSECA WOLFF, Porto Alegre/RS

Ela devolveu a garrafa de cerveja à estante, entre a champanhe e o absinto, e dispôs todas com os rótulos para a frente. Enquanto girava as garrafas, olhou pelo espelho o reflexo do homem sentado ao bar, que ainda a observava ao mesmo tempo em que rabiscava em um pedaço de papel. Esquivou os olhos. Limpou com um pano algumas partes do bar, secou as mãos na saia do vestido e voltou-se para o salão que começava a esvaziar. O homem vinha de desenhar algo, parou e sorriu-lhe. Ela também sorriu, depois de um curto suspiro e um par de segundos de esgotamento; sempre havia que sorrir aos bêbados do Folies-Bergère.
Tomou um corredor que a levava para longe das luzes e dos últimos movimentos da multidão de clientes e bailarinas. Na semiescuridão, falou brevemente com uma das garotas sobre um empréstimo de maquiagem e pediu o pagamento ao chefe. Recebeu a metade. Tirou enojada os brincos, o colar, as pulseiras, as ridículas florzinhas do vestido que lhe davam alergia; jogou-os à caixa que a madame vigiava no camarim e ocultou o dinheiro no decote.
Saiu à rua e pôs-se a caminhar pela noite de primavera, na direção da Sacré-Coeur. Desviou da imundície na calçada, pensou nas costuras por fazer, com entrega marcada para a tarde. Sentiu que a seguiam. Olhou por sobre o ombro: o desenhista vinha falar-lhe.
- Excusez-moi, mademoiselle.
Ele acercou-se. Ela fez um sinal às outras moças que saíam do salão e, aqui e ali, trocavam confidências com senhores de smoking e cartola.
- Trate com uma delas, monsieur.
- Non, non. Me encantaria pintá-la.
- A mim?
Quis rir. O desenhista ofereceu uma nota de dinheiro. Não era belo nem feio, tinha uma testa larga e uma barba agradável, e parecia dizer a verdade, ou ao menos uma das meias verdades que se dizem nas horas entre a meia noite e o amanhecer. Na pensão só a esperava mais trabalho. Aceitou com um movimento da cabeça e o acompanhou, em silêncio, a um endereço desconhecido.
Chegaram a uma casa escura. O homem deu-lhe passagem ao descerem um lance de escadas até uma porta de madeira, abaixo do nível da rua. Ela imaginou se uma esposa, talvez uma criança, não dormissem no primeiro andar, mas nada disse. Entrou pela porta que ele abriu. Parou um momento enquanto ele acendia uma lamparina, observou os pincéis, as tintas, os panos e lápis, as pinturas e desenhos espalhados na parede, os móveis – um banco, uma mesa, um cavalete, um sofá coberto por um lençol. Esperou que ele desse alguma ordem, mas tirava o chapéu e o casaco sem falar. Ela ficou diante de um espelho com a borda rachada e arrumou o cabelo. Ele veio às suas costas. Novamente se encaravam pelo espelho, e ela afinal compreendeu o que lhe cumpria fazer. Tirou devagar a roupa, largou o vestido, a anágua e tudo mais ao solo, e esperou que ele a tocasse.
Mas o homem apenas a olhava fascinado até que disse:
- Deite-se, s'il vous plaît.
Ela obedeceu. Recostou-se no sofá. O desenhista ofereceu uma taça de vinho e ela bebeu um gole. Ele permanecia perto, como se estudasse sua posição. Ela devolveu a taça, tomou-lhe delicadamente a mão e a conduziu entre suas pernas, mas ele a rechaçou com a mesma suavidade. Fez um carinho em seu cabelo e advertiu com um sorriso:
- Vou torná-la imortal.
Nem me escolhem para dançar no salão.
Ele tomou assento no banco e pôs-se a desenhar, a gestos rápidos, enquanto seus olhos percorriam sua modelo. Ela seguia o olhar que deslizava sobre seu corpo, encarando-o com uma súbita valentia, a inebriante audácia de crer que um dia haveria em alguma parte uma pintura sua, e as pessoas – quiçá os mesmos senhores que lhe pediam bebidas sem olhá-la duas vezes – a admiraria com a mesma devoção com que o desenhista agora a estudava, e ela não mais seria a garota a quem o chefe jamais chamou para apresentar-se ao público, por não ser tão bela ou não dançar tão bem; seria uma musa inesquecível. Deleitava-se. Voltou a beber da taça de vinho e começou a falar, contou de quando era menina em Rouen e de como veio morar em Paris, da avó que a ensinara a costurar, do emprego no Folies-Bergère, das fofocas da pensão, do que lhe aprazia na música, nas artes. O desenhista a escutava sem interromper o trabalho, movia a cabeça para concordar, dizia sim ou não a alguma pergunta. Ao final, ela bocejou. Perguntou se o incomodava que fechasse os olhos, mas não esperou a resposta; o que já parecia sonho se dissolveu e ela adormeceu de um instante a outro.
Despertou quando uma luz tépida entrava pela janela. Abriu os olhos com esforço. O desenhista também dormia, sentado à mesa, debruçado nos papéis. Tinha a boca aberta e uma mancha negra de grafite na face, perto da barba. Ela levantou-se e aproximou-se da mesa. Achou graça dos rascunhos: em um, ela no bar; em outro, deitada no sofá; em um cansada, em outro satisfeita, quase triunfante. Sorriu. Tocou a representação de seu rosto em preto e cinza. Parecia linda e importante. Imortal. Notou que a nota de dinheiro prometida pelo homem como pagamento estava sobre a mesa, mas não a recolheu. Em vez disso, pegou, com um titubeio, o desenho que mais a agradara, e enrolou-o. Sentiu a pele arrepiar com o frio da manhã nova. Vestiu as roupas, pôs os sapatos e catou do chão o dinheiro do salário do salão que havia caído com o vestido. Buscou o lençol do sofá e o deixou amavelmente sobre os ombros do artista adormecido.
Saiu evitando ruídos, para não acordar quem pudesse estar nos outros andares da casa. Ganhou alegre a rua. Passou por uma carruagem, pelo vendedor de jornais, por um cachorro que se coçava e a seguiu por um pedaço do caminho. Em um apartamento próximo, alguém praticava gaita. Paris amanhecia, e ela, agarrada ao desenho como a um tesouro, tinha vontade de dançar.


Renata Wolff nasceu em Porto Alegre, RS, em 1980. É formada em Direito pela UFRGS e servidora da Justiça do Trabalho. Começou a frequentar oficinas literárias em 2006. Participou das coletâneas "103 Que Contam" (Nova Prova, 2006) e "Outras Mulheres" (Dublinense, 2010), organizadas por Charles Kiefer. Tem contos selecionados e premiados em diversos concursos nacionais e internacionais. É autora do livro de contos "Fim de Festa" (Terceiro Selo, 2015), finalista do prêmio Livro do Ano da Associação Gaúcha de Escritores e do Prêmio Jabuti.


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Objetivo©
2º lugar
MATHEUS FERRAZ, Contagem/MG

Cícero já havia ouvido falar daquilo. Diziam que acometia soldados que se viam pela primeira vez no campo de batalha. Dentro do quartel, nas alas de prática de tiro, esses soldados eram capazes de acertar a mosca do alvo a vinte metros de distância. Mas, quando se viam em situações reais de combate, se davam conta de que havia duas diferenças importantes entre atirar num alvo de papel e atirar num inimigo. Em primeiro lugar, o alvo não atira de volta. Em segundo, o alvo não implora pela sua vida.
Disparar uma bala e tirar uma fotografia eram coisas muito diferentes, mas o que Cícero sentia naquele momento era semelhante à história do soldado. Ele tentava se lembrar das aulas de fotografia na universidade. Tentava se lembrar dos trabalhos de jornalismo fotográfico que apresentara, com matérias sobre a rodoviária, a Praça da Liberdade e o Edifício Maletta. As tardes se arrastavam tediosamente naqueles quatro anos, passados entre a sala de aula e estágios em assessorias de imprensa. À noite, depois de uma ducha e um prato de miojo, Cícero assistia a filmes como O Ano em que Vivemos em Perigo e Os Gritos do Silêncio, onde jornalistas cobriam guerras e revoluções, muitas vezes arriscando a própria vida no processo. O que não daria por um pouco de ação na sua vida!
- Você vai tirar a foto ou essa câmera é de brinquedo? - disse uma voz ao seu lado, trazendo-o de volta ao tempo presente.
O soldado era alto e magro como um poste, sua pele escura como a noite e os olhos cansados injetados de sangue. O seu português possuía um sotaque pesado, mas ainda assim Cícero podia entender cada palavra. O soldado segurava sua metralhadora kalashnikov com mais firmeza do que Cícero segurava a objetiva, e não parecia incomodado pelo cheiro ou pelas moscas.
Cícero mirou a câmera para a vala e encostou seu dedo no botão. O editor da revista, em seu escritório limpo e arejado, precisava de ao menos vinte boas fotos dele. Cinco jornalistas e um outro fotógrafo estavam trabalhando naquela matéria, e Cícero precisava fazer sua parte. Era melhor fazê-lo enquanto havia luz.
Mas observar aquela cena através da lente de sua objetiva era, de alguma maneira, ainda mais perturbador. Até o cheiro parecia se intensificar. Cícero pensou novamente no seu estágio, onde passava o dia a escrever releases e matar tempo no Facebook quando o chefe não estava olhando. Tomava mais café do que devia, apenas para evitar dormir em sua escrivaninha. Mastigava barras de cereal para se distrair. Caminhava pro banheiro para esticar as pernas. Quem diria que um dia ele sentiria falta daquilo?
- Vamos logo! - disse o soldado, e Cícero entendeu que aquela pressa não era só um capricho. Os abutres estavam sobrevoando o local, e os soldados inimigos poderiam chegar a qualquer momento.
Cícero respirou fundo e começou a tirar fotos. O flash criava sombras escuras que davam à cena ares de filme de terror. As caveiras pareciam ter olhos, os braços pareciam estar em movimento, um bebê morto parecia estar sorrindo. Era como se os corpos amontoados naquela vala estivessem fazendo pose para o fotógrafo estrangeiro que tinha vindo em busca de ação.
Quantas pessoas havia naquele buraco? Trinta? Quarenta? Cinquenta? Difícil dizer naquele estado de decomposição. O amontoado de corpos abrigava um país de moscas e larvas, que também queriam aparecer. No começo havia sido difícil. Agora, Cícero não podia mais parar de tirar fotos.
- Já é o bastante. - disse o soldado, segurando-o pelo ombro.
Cícero não podia parar. Era isso que queria, não era? Era por isso que tinha voado aquela distância toda. Todo o esforço para conseguir aquele emprego, para convencer os pais de que era esse seu sonho. Tudo aquilo para estar diante daquela vala, e ele nunca mais iria encontrar um modelo melhor para sua câmera.
- Já é o bastante! - repetiu o soldado, e daquela vez Cícero parou. Estava ofegante e coberto de suor, e não era apenas por causa do sol africano que já estava sumindo no horizonte.
Ele continuou encarando a vala, enquanto o soldado o puxava de volta para o jipe. Continuou encarando a vala, e podia ver a vala encarando de volta. Ele ainda a encarava no caminho de volta para o quartel, enquanto enxugava as lágrimas que caiam pelo rosto. Aquela seria a pior noite de sua vida.


Matheus Ferraz é mineiro de Contagem, e já tem quatro livros publicados, dois deles em inglês. Formado em jornalismo e com um mestrado em biografia pela University of Buckingham, na Inglaterra, Matheus tem também trabalhos publicados em italiano, e atua como ghostwriter de livros de memórias.



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Oferenda©


3º lugar
IGNEZ MONTEPULCIANO SANTOS DE OLIVEIRA, Belo Horizonte/MG


Apaixonei-me por uma egípcia. Muito mais nova que eu, poderia ser seu pai ou talvez até avô. Faço o que posso para agradá-la. Ela retribui como só ela sabe fazer. Por sua causa remocei afetiva e sexualmente. Isso ela me afirma, dizendo-me entre sussurros que sou o melhor amante que já conheceu. Talvez não tenha conhecido muitos, mas isso nem deve ser mencionado. Minha gata adora joias, roupas luxuosas, perfumes, passeios românticos, jantares em restaurantes badalados. Posso proporcionar-lhe tudo isso e muito mais. Afinal, estamos em Paris. Quando viermos para o Brasil, pois já combinamos isso, ficará deslumbrada com minha mansão em Sampa, repleta de móveis caros e objetos de arte, dirigida pelo mordomo mais bem pago do universo. Enriqueci comerciando com arte. Além de conhecedor e amante do belo, nunca tive escrúpulos em me desviar da lei para obter quadros, esculturas, objetos. Visitei paróquias mineiras adquirindo de párocos tolos e mal intencionados objetos pertencentes à igreja, mas cujo produto iria abastecer os bolsos da batina do homem e não à organização religiosa. Comprei arte proveniente de roubos da última guerra, obras raras escamoteadas aos vencidos. Mas também negociei de modo lícito, comprando e vendendo de modo idôneo. Sou bem aceito na sociedade e quando fiquei viúvo, rico e sem filhos, mulheres sem conta passaram pela minha cama. Nunca me interessei por alguma, apenas eram divertimento para um mês, uma semana, uma noite. Estou apaixonado, repito. Agora quero me estabelecer com minha deusa de olhos esverdeados e fazer-lhe todos os desejos. Ela parece adivinhar que não tenho escrúpulos. Sua última vontade é possuir uma escultura de deusa Bastet, uma das esposas de Rá, a gata senhora dos mistérios da natureza. Farei tudo para satisfazê-la, até assaltar o museu, onde se encontra o objeto sonhado. Já lhe mostrei reproduções, caríssimas por sinal, mas nada a satisfaz. "Meu amor, você é mais poderoso que qualquer faraó, de qualquer dinastia. Quero aquela escultura ali." E com o indicador adorado aponta Bastet, no Louvre. "Repare como é linda. É gata, mas também é mulher. A mulher que desejo ser para você e tornar suas noites perfumadas. Nosso amor é tão grande... Não quero outro homem." "Sim, meu amor, minha Bastet. Sou o devoto mais fervoroso de nossa religião. Seja Bastet e serei Rá, o deus solar." Assim dizendo, pensava em ouro, pois que sol me lembra ouro, sempre lembrou. Acontece que museu é museu. Não se vendem peças de museu. Ou se vendem? De tanto pensar acabei tendo uma série de sonhos, em que roubava Bastet, a escultura é claro. No primeiro sonho, cheguei a por a mão na desejada peça, mas, quando a segurei, ela se transformou em outra, em que a cabeça é de uma mulher, com feições e orelhas de gata. Larguei-a imediatamente e uma voz me avisou em meu sonho: "Sou Bastet. Nada me escapa. Meus olhos tudo enxergam, até o futuro." Qual seria meu futuro? Acordei. No segundo sonho, procurava entre as peças, a que minha gata queria, nunca a encontrando, pois faltava-lhe ora o colar, ora os brincos, ora o sistro, seu  instrumento musical sagrado. No terceiro só me apareciam gatas em pé. Ora, minha amada desejava a escultura em que ela aparece deitada em todo seu esplendor. Finalmente, depois de muito procurar, achei-a. Estava bem no centro, em uma redoma de cristal. "Minha Bastet, venha para o papai." Segurei-a, não havia guardas naquele museu, o museu de todo ladrão de arte. A redoma se desfizera, como neblina do Nilo. "Estou feito! Minha gata vai adorar. Vai ser a Bastet mais sensual que já tive em minha cama. E quando formos para Sampa, todos meus amigos babacas vão me invejar. Sou velho, mas ainda sei agradar uma mulher." De repente, alguma coisa me diz que estou errado e muito encalacrado. A voz que me conduz os sonhos me alerta: "Olhe bem o que você está levando." A voz sempre fala pouco, mas diz muito. Olho, reparo. Bastet se transformou em Sekhmet, a sanguinária. Sua cabeça felina transformou-se em cabeça de leoa. Sei que ela vai me devorar e depois talvez devorar toda a humanidade, até que Rá, no caso eu mesmo, a embebede com vinho, fazendo-a se amansar e ser novamente a meiga Bastet. Apavoro-me. Busco desesperado a redoma vazia de onde a retirara. Não existe mais, virara neblina. Afogo-me no Nilo ou no Sena?  Não sei. Jogo a escultura no Tietê, tão sujo, ali é seu lugar. Como o rio de Sampa foi me aparecer em Paris? Fujo. Não quero acordar, não quero. O que farei, depois daquela voz, depois daquele sonho?


Ignez Montepulciano Santos de Oliveira, nascida em Belo Horizonte, 16 de janeiro de 1937, professora aposentada, autora: Fadas e Bruxas; O caldeirão da bruxa; Circo de A a Z. Não publicados diversos poemas, contos, contos de cunho infantil e uma gramática lúdica completa com meta linguagem: Viagem com Dona Gramática. Premiada em 1967 na faculdade de Letras e Filosofia de BH, com o titulo Quadrado de vida (poemas). E mãe de 7 filhos, sendo um falecido.



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O fazedor de borboletas©

1ª Menção Honrosa
AIRTON SOUZA, Marabá/PA

Surgia outra manhã no mundo, quando essa estória, que traz a receita sobre como fazer borboletas, também nascia na cabeça de um teimoso menino que amava desvendar mistérios. Amanheceu excepcionalmente naquele dia, como correm os rios diariamente a beijar suas margens com ternura e a pressa das despedidas, como correm os rios para um lugar chamado mar. É certo que o amanhecimento naquela manhã ainda não era por completo, porque o sol tinha em sua pele vermelha uma timidez a cobrir o lado de fora de todas as casas. Ele não veio com o seu jeito feroz de ser e esquentar o mundo. Assim, o sol mantinha a aparência de esta somente a cheirar as paredes externas das casas e dos velhos muros brancos sem amor, da cidade inteira.
Mas, o menino Mundico, que dormiu a noite anterior com uma grande dúvida nos olhos e o coração repleto de outras estranhas estórias, tinha para esse dia, a difícil tarefa de desvendar o incrível mistério de como são feitas as borboletas. Esse mistério veio atormentar Mundico na manhã passada, quando percebeu que muitas borboletas, que antes não haviam por ali, passaram a frequentar sua casa, o quintal e outros lugares. O menino tinha na imaginação, antes de adormecer na noite passada, vozes que gritavam dentro de sua boca, mas em silêncio, uma maneira de perguntar a si próprio, perguntas quase sem respostas para aquele instante. Entre as principais perguntas, ele mesmo se fazia essas: “ Como eram pintadas as borboletas? Com que sentimento elas voam? Quem era o artista que imaginava cada cor para cada borboleta, no mundo?”
Nada seria fácil para o menino ter que atravessar o quadrante da porta de madeira, ainda com a janela totalmente fechada, para sair à busca de algumas pistas, na tentativa de desvendar a verdade exata de onde vêm as borboletas e suas pintadas cores, presente em cada modelo borboletal. Isso se deve porque as constantemente visitas inesperadas de diversas borboletas era um dos fatos estranhos acontecendo agora, tanto em sua casa quanto nas dos vizinhos.
Ao atravessar a porta e ganhar o rumo da rua, o menino, percebeu que a solidão ainda dominava a cidade por inteira. Mas era preciso buscar a resposta à dúvida a respeito do fazimento das borboletas. Ao passo que quanto mais caminhava, a tomar considerável distância de sua casa, Mundico percebeu  há alguns metros depois, nem sabe ao certo, o menino, se foram mesmo metros ou quilômetros, algo diferente em uma das casas. Ao olhar detalhadamente para a casa, reconheceu-a, era a morada de seu Ambrósio. Um velho homem feito de silêncio, desamparo e solidão. “Então, agora ele cultiva flores e tem um jardim.” Pensou para dentro de si o menino.
É possível que Ambrósio tivesse adquirido, nesses últimos dias, a estranha e bela mania de cultivar flores durante as ensolaradas manhãs, nos dias. Estranho porque cultivar um jardim era a tarefa que ninguém mais fazia nesse tempo.
Por sorte, ou coisa semelhante, o menino parece ter iniciado bem a sua investigação, pois, ao perceber o jardim plantado em frente à casa de seu Ambrósio, notou também que o homem, pacientemente, observava bem de perto uma coisa pendurada no caule de uma das roseiras, plantada no jardim. O velho de cócoras mantinha seus olhos grudados no estranho negócio. Ao longe, não dava para Mundico enxergar exatamente o que era.  Para não ser percebido pelo homem, Mundico tomou distância e escondeu-se atrás de um poste de energia elétrica e, sentou, para confortavelmente, observar melhor. Suas retinas miraram o homem e os gestos dele. Foi quando de repente seu Ambrósio levantou e entrou apressado para dentro de sua morada. Ao demorar poucos minutos retornou trazendo, ainda com mais pressa, outras estranhas coisas e passou a perdurá-las em muitos galhos nas mais variadas plantas. 
Sentado, Mundico ficou ali sem sabe ao certo quanto tempo havia se passado, se foram minutos ou horas, cumprindo a tarefa de somente observar. O levantar e sair do homem a trazer coisas e mais coisas para pendurá-las nos frágeis galhos das plantas, alimentava ainda mais a curiosidade do menino e também outras incertezas.
- Aquilo só pode ter algo haver com as borboletas. Pensava o menino.
Uma das verdades do mundo o menino já tinha compreendido. Por isso, ele tinha sempre mais perguntas que respostas, porque sabia que perguntar é o que alarga o mundo.
- Mas, o que será que esse homem dependura nos galhos das plantas de seu jardim? O menino tinha sempre na boca uma fala de si para si mesmo, vestida de muitas perguntas e poucas respostas.
Daquele espaço seus olhos não foram desgrudados em nenhum instante. Ele notara que talvez naquele jardim estivesse a resposta que tanto buscava, na manhã de um triste sol. Pois, não demorou a perceber que por lá havia muitas borboletas a voar.
Perto de meio dia, seu Ambrósio, como costumava fazer todos os dias, entrou para sua casa e fechou todas as janelas e portas e, foi dormir. A própria idade e o desamparo tinham ensinado o velho homem que o tempo é natureza invencível, por isso, suas tardes eram divididas entre o dormir e o sentar a porta da casa, sempre ao fim da tarde, para observar as cenas do mundo. Quase meia hora depois de só observar toda a movimentação e perceber que não acontecia nenhum movimento na morado de seu Ambrósio, que tinha suas portas e janelas fechadas, Mundico, que não sabia da mania do velho homem, tomou coragem, levantou e caminhou serena e decididamente para o rumo de acesso ao jardim. Ficou impressionado, ao se aproximar, com a imensa quantidade de borboletas a voar pelo jardim inteiro. Mas, o menino queria mesmo era olhar bem de perto o que seu Ambrósio tanto pendurava nos galhos das plantas. Por isso, ignorou as borboletas e foi aproximando-se, sem entender nada, quando de repente enxergou algo que aparentavam ser lagartas, todas enredadas com um emaranhado de fios de linhas coloridos.
- Não estou entendendo nada. O que essas lagartas estão fazendo aqui enroladas com linhas coloridas? Mundico sempre tinha perguntas. Porque era esse o seu gesto de enfrentar o mundo.
Foi quando encontrou bem próximo onde seu Ambrósio tinha passado um bom tempo pela manhã, de cócoras, um pequeno caderno. Sem demora abriu-o. Tinha poucas folhas e todas elas amareladas pelo tempo. Parecia ser um caderno de receitas todo escrito a mão. Assim, o menino foi passando folha por folha, lendo um pouco de cada escrito. Com as mãos tremulas e os olhos ansiosos, Mundico ficou a vigiar, ao mesmo tempo, ora os movimentos dentro da casa, de portas e janelas fechadas, ora as letras no velho caderno, de folhas amareladas. Seu medo maior era ser descoberto revirando o jardim de seu Ambrósio e receber um castigo por isso.
Mas, uma das receitas lhe chamou bastante atenção. O escrito inicial dizia: “Como ser feliz fazendo borboletas”. O susto foi maior ainda, quando o menino Mundico, ao terminar de ler todo o texto notou que ali estava à receita de como fazer borboletas. As letras ensinavam o passo a passo. Foi só a partir disso que compreendeu porque as lagartas estavam penduradas nos galhos das plantas. O homem que tinha mania de cultivar flores guardava o segredo, em seu caderno de receitas, de como fazer borboletas e enganar os dias.
Todas as noites seu Ambrósio caminhava, com o seu pé de vento e sorrateiro, pelos quintais dos vizinhos, quando eles estavam a dormir. Sua tarefa era procurar lagartas no tronco das árvores e embaixo de velhos utensílios abandonados nos quintais. Depois de colher muitas lagartas o homem passava a madrugada inteira a costurar pequenas peças com linhas coloridas, para cobrir todo o corpo das lagartas, fazendo casulos, e na manhã seguinte pendurava todos os casulos em seu jardim. A linha colorida e as cores das flores serviam para que as lagartas, quase borboletas, pudessem ganhar suas próprias cores. Durante algumas noites, as lagartas recolhidas nos quintais dos vizinhos do velho Ambrósio, permaneciam dentro de um casulo feito de linhas coloridas, assim elas dormiam a serenar no tempo e pela manhã elas auroresciam, até o amanhecer firmar de vez. Essa era também a maneira das lagartas se transformarem em borboletas. Era dentro do emaranhado de linhas que as lagartas, com o passar dos dias, transformavam-se, ganhando cores e asas. Para isso, era necessário que Ambrósio todas as manhãs cumprisse seu ritual de acordar todas elas antes de o sol nascer no mundo e, as mantivessem acordadas durante a manhã e, dormir somente à tarde e a noite.
Seu Ambrósio, que tinha a receita de como fazer borboletas, criou para seus dias a metamorfose de viver acompanhado de borboletas e flores para não ser só solidão. Pois, fazer borboletas era o seu jeito de vencer o abandono, tanto nos olhos como no corpo inteiro. Enquanto costurava lagartas com linhas coloridas, era a própria vida que a homem costurava.
No dia que descobriu o segredo de como fazer borboletas, Mundico voltou para casa e a noite foi para o embalo de sua rede, para adormecer, já sabendo que o fazedor de borboletas era um velho homem e o antigo tempo que passeia entre o chão e o céu, nos dias. Foi exatamente assim que o menino aprendeu que significar para as borboletas era primeiramente aprender o sentido dos chãos, da terra mesmo e das pedras entre grãos de areias. Somente depois disso é que estavam prontas, as borboletas, para aprender a utilidade do céu, ou coisa que é aproximadamente isso.


AIRTON SOUZA é poeta, professor e autor de diversos livros de poemas. Tem textos publicados em mais setenta antologias literárias.  Já venceu diversos prêmios literários entre eles: Prêmio Cannon de Poesia, Prêmio LiteraCidade, Prêmio Dalcídio Jurandir, IV Prêmio Proex de Arte e Cultura, III Prêmio Nacional de Literatura da UFES, Prêmio Nacional de Literatura Asabeça, Prêmio Nacional Machado de Assis.



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ALMAS DE PAPEL©

1ª Menção Honrosa
EDIH LONGO, São Paulo/SP

Marcão chegou de mansinho. Raimunda gozava, então... De boa saúde. Ele se achegou, aconchegou-se e adentrou o universo da ingênua Raimunda. Via de dúvidas, ela se achegou também e foi ficando... Ficando... Grávida de cinco meses. Abandonada por ele e pela família adquiriu doença de rico: depressão.
Jogou-se num despenhadeiro com os juros de sua inútil vida dentro de si. Que investimento mais besta! Ruminava esse pensamento enquanto sentia as dores entorpecidas por uma garrafa de cachaça. Antes de começar a beber, leu o rótulo em letras garrafais: CAXASSA DA BOA! Em negrito e com a devida exclamação, além do absurdo erro.
Tanto linguístico quanto no ato dela. Sabia que ficaria presa eternamente no purgatório como diria Padre João, mas enfim, queria, pelo menos uma vez na vida, ser dona dela mesma. Vá confundir assim “liberdade de expressão” com “abuso de expressão” no inferno. Vagabundo!
Como ela, diria a mãe. Passou a vida sonhando com fadas. Escrevia, no entanto, com o coração como dizia a sua leitora Magda. Só ela a compreendia e incentivava. A mãe achava que o que ela fazia era coisa do Diabo. Onde já se viu uma pessoa de letrinhas num papel? Uma pessoa tem que ter alma. Almas de papel?!
Mãe, respeite minha “liberdade de expressão”.
A mãe, que não entendia nada de “liberdade” - tirana com todos - sendo abandonada pelo marido por motivos de agressão, inclusive física. Dela, não dele. Muito menos sabia o que significava “expressão”. Era analfabeta.
Pois não é que ela foi ao Padre João confessar o pecado da filha? Ele chegou ao quartinho apertado e foi logo mandando Raimunda rezar três pais-nossos e duas ave-marias. Foi um bate-boca dos diabos, quero dizer, dos deuses.
“Só isso, Padre?
Não é lá um pecado tão grande, mas a ignorante de sua mãe me obrigou a vir lhe dar a absolvição, senão, não cuida mais da limpeza da Capela. Chantagista!
Mas não sou eu que tenho que lhe contar meus pecados?
Por que? Tem outro maior? Assim vou perder a faxineira voluntária.
Estou grávida do Marcão. Ele caiu fora.
Sem casar?! Multiplique tudo por mil, tanto os pais-nossos quantos as ave-marias. E cuide bem do pequeno órfão de pai.
Mas, se eu fosse casada não seria um pecado maior?  Mais do pai que considerou o filho um ser abandonável? E se eu abortar, o pecado não será maior do que maior?
O que é agora?! Além de escrever e inventar alma de papel, como diz sua mãe, sabe interpretar melhor as escrituras do que seu confessor? Pois pode multiplicar tudo por dois mil.
Por favor, Padre, que minha mãe não respeite a minha liberdade de expressão, eu entendo, pois é uma analfabeta, mas o senhor? Ora, nem Jesus faria uma multiplicação dessas. Ele só multiplicou os pães e peixes para os esfomeados e disse que a gente só devia crescer e se multiplicar. Ele não falou nada em casar.
Esqueceu-se de que ele multiplicou também o vinho e, justamente, numa festa de aniversário?
Dá licença, Padre. O senhor trocou até o evento... Era uma festa de casamento, mas ele estava se divertindo e, cá entre nós, ficar sem vinho numa hora destas! Ele nunca mais falou sobre esse assunto de casamento. Acho que é porque sempre falta alguma coisa. Nunca ouvi ninguém elogiar uma festa, principalmente, de casamento. Ou a noiva está feia, ou a comida está ruim.
Ah, quem tem que me dar licença agora é você. Eu hein?! Louca imunda!”
O Padre saiu pisando duro. Raimunda olhava o mundo como se estivesse acima das nuvens. Criava o seu Universo e governava absoluta. Dona Magda adorava o que escrevia. Era uma leitora especial.
Ao descobrir que ela vendia as suas histórias a uma escritora de verdade, a desilusão foi demais. Pegou-a pelos cabelos e lhe deu dez tapas na cara. Como era justa, cinco em cada uma das faces. Isso sim, achava que Cristo aprovaria.      
Mas, o povo não perdoa. E em termos de povo, o Brasil é número um na desclassificação do seu povinho. Aliás, a maioria não sabe nem ler. Agora, além de uma louca imunda, pois inventava gente com alma de papel, era uma safada vagabunda, pois seria mãe solteira.
Já fez até um poema sobre a cumplicidade entre seu nome Raimunda e as rimas. Nome fácil de rimar até com palavrões. Que pena que sua leitora era também uma farsa; oriunda dessa gente que feria a sua imaginação fecunda, e machucava sua alma de uma honradez profunda. Que licença poética, pensou suspirando, rimar em uma prosa! Desculpem-me, possíveis leitores.
Não daria a ninguém a satisfação de assistir ao seu sofrimento. Era pessoal e intransferível o seu livre-arbítrio, que desculpem a evidente redundância do escrito, mas isso também era só da sua conta.  Então, fez o que julgava a coisa certa e voou no seu precipício. Sempre quis ser um pássaro. Morreu feliz, pois morreu poeta.  Com sua liberdade à flor da pele e a alma transbordando de expressões.
Tudo agora era só dela: a sua vida e a sua morte. Levaria consigo a sua alminha humana e sob o roto colchão, deixaria cadernos repletos de almas de papel. Deixou também um bilhete escrito às pressas:
“Se pra todos isso dá conforto,
que se alegrem pela minha ida.
Só sinto pelo meu natimorto,
  sem sequer conhecer a vida”.

E assim foi o seu FIM.



Edih Longo nome artístico de EDILEUZA BEZERRA DE LIMA LONGO, é linguista, professora de português e escritora. Formada pela USP. Tem também formação teatral, fazendo parte do Grupo “Arte in Cena” do Clube Paineiras do Morumbi. Aposentada, dedica-se atualmente apenas a escrever e atuar amadoristicamente. Já recebeu alguns prêmios como contista, poeta, dramaturga, tendo recentemente sido agraciada com três primeiros lugares nestas modalidades pela UBE- RJ (União Brasileira de Escritores).



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Fabulosa Paixão©
2ª Menção Honrosa
LUCIANE MARIA COUTO CUNHA, Contagem/MG

Assim que ele desceu da moto e começou a caminhar pela praça, eu sabia que seria ele. A tarde era fria, e eu esperava entediada sob um rasgo de sol que me alcançava. Àquela hora, grande parte dos amigos que iniciaram o dia na praça comigo já tinham ido embora, acompanhados; alguns felizes, outros apenas resignados. Não era a primeira vez que eu ali estava e já estava perdendo as esperanças de que seria a última, até avistar o homem de testa franzida, pronunciada sob as frestas da franja comprida do negro cabelo que quase escondia seu olhar gentil. A barba por fazer revelava um homem pouco vaidoso, no entanto certo de sua beleza máscula, mesmo que os lábios finos remetessem a um quê pueril. As pernas longas, ornadas pelo jeans surrado, o traziam em  firmes passadas em minha direção, e daí eu não relutei em ser clichê: alinhei minha espinha, deixei minhas ancas se pronunciarem num ângulo favorável, conferi discretamente se eu ainda tinha em mim o aroma cítrico do  sabonete do último banho tomado (a contragosto, confesso) e busquei estampar meu  olhar de Capitu. E permaneci em espera, repetindo mentalmente meu gasto mantra: “que ele não prefira as clarinhas que aqui estão, que ele não prefira as clarinhas”... (sim, eu não sou portadora de uma autoestima elevada, resultado da constatação diária  do olhar do outro sobre mim, onde eu lia que minha negritude não  remetia à fortuna. E pelo fato de viver há tempos num lar provisório, cedido  a mim e a alguns outros por um favor, desde que deixei a proteção das asas de minha mãe - talvez asas não retratem bem o que eu tinha junto a minha mãe, mas ainda assim a lembrança materna era algo que me remetia à sensação de aconchego, agora tão distante e nebulosa. Além disso, eu  também tinha plena consciência que a ampulheta do tempo já levava minhas formas Lolita, o que dificultaria ainda mais o encontro com alguém para eu chamar de meu).Na praça, eu continuava naquela fatigante espera, agora sustentada pela falsa autoconfiança onde me empertiguei, enquanto ele andava e observava todas as outras que  também e ainda aguardavam na tarde outonal. De repente, ele parou à minha frente e me encarou, ensaiando um sorriso. Então eu vislumbrei que ele também ali soube, naquele segundo crucial onde nossos olhares se cruzaram,  que seria eu. Depois de alguns protocolos cumpridos, ele me conduziu, decidido e zeloso, e me acomodou da melhor e mais segura forma possível na garupa de sua moto. Eu me sentia inadequada e apreensiva enquanto a moto traçava um caminho que nunca antes percorri, mas pouco depois ele parou. Chegamos. A casa dele. O mundo dele. Eu entrei ali para ficar. E nascia ali aquela rotina confortável: refeições compartilhadas na noite (o peixe que ele me preparava era meu preferido), minha diária e agitada espera pelo seu retorno  do trabalho, quando muitas vezes ele me trazia um mimo (mimos que quase me divertiam quando das horas solitárias no apartamento pequeno)... Logo na primeira semana, ele ornou meu pescoço com um lindo colar; eu não era especialista em joias, mas aquela gargantilha com meu nome gravado me parecia linda, cara de afeto e deixava explícita que a ele eu pertencia. E declaro, sem pudor, que eu adorava esse sentimento inédito de pertencimento a alguém, e essa certeza continha em si um bálsamo para todas as privações que eu deixara para trás. Já estamos juntos há alguns anos e ainda não me cansei de me aconchegar toda noite em sua cama e no seu calor, confortando-me no seu cheiro almiscarado, enquanto aguardo um afago antes que ele durma, sereno. Acordo cotidianamente antes dele, e vigio seu despertar, quando então ele me dirigirá aquele seu afetuoso bom dia, e eu, sempre dissilábica, retrucarei: miau...


Luciane Couto: Mineira enlaçada pelas palavras desde sempre, tento tecer com elas o real e o imaginário, bordando preciosas tramas.  Trabalho a palavra para a cura (como psicóloga) e para o deleite (como poeta). Lancei em novembro de 2016 meu primeiro livro de poemas: Composição.



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TPM©


2ª Menção Honrosa
LÓLA PRATA, Bragança Paulista/SP

O CONFLITO ======= 1

Cláudia olhou para a pia da cozinha. Desordem total! A empregada faltara à obrigação talvez devido ao tempo encoberto por nuvens. Apesar do muito trabalho por fazer, deu de ombros. Não considerou como sua obrigação pois estava em vias de abandonar o recinto. Aguardava, apenas, que o táxi chegasse. Queria sair, fugir logo, antes que o coração enfartasse ou que suas pernas recomeçassem a doer. Nesses arroubos de fuga que, vez por outra, a acometiam, a ânsia de se libertar dos atritos conjugais a envolvia por inteiro. Noventa e nove por cento desses casos se desvanecia ao crepúsculo, quando se distraía em preparar o jantar para recebê-lo. Mas ele extrapolara nessa manhã. Agora, ela queria sossego! Nada de reclamações! Nada de acusações infundadas! Nada de conflitos com os filhos adolescentes!
Em bom português: estava “cheia”! Estressada! Magoada! Irritada! Infeliz! Depressiva! Se pudesse, rasgava a carteira de identidade, o CIC, e apagaria todos os números que a classificavam perante a sociedade afora.

O TÁXI ========= 2

A competente secretária da Frota de Táxis localizou o nome e o endereço da cliente, pelo sistema bina; repassou ao Fagundes, o primeiro da fila, o urgente chamado. Era isso que exigia o complexo de segurança nos atendimentos domiciliares. Confiante, o motorista seguiu adiante, até a segunda sinaleira. Parou ante a cor vermelha. Eis o problema formado...
Dois rapazotes invadiram o veículo e, com tom agressivo, anunciaram o assalto e o sequestro dele e de quem o motorista fosse atender. Haviam interceptado o telefonema.
Os circunstantes nem notaram o desenrolar da cena. Nada mais natural que haja gente entrando em carros de aluguel. Fagundes não titubeou e ei-lo na direção da residência da madame Cláudia, com a dupla de facínoras.

A SOGRA ======== 3

O almoço de dona Arminda fora fraco e insosso. Não lhe caíra bem. Desligou a TV que a incomodava. Sentia-se frustrada porque a nora cancelara a visita às lojas, conforme haviam combinado. Aliás, a voz da nora Cláudia soara tão sinistra...
O que estaria acontecendo, na verdade?
E assim, matutando, levantou-se, caprichou no batom e seguiu para lá. No trajeto, comprou uma caixa de bombons deliciosos para presentear a esposa do filho e agradá-la. Chegaria em vinte minutinhos de caminhada. Quem sabe fizessem, juntas, os famosos bolinhos de chuva?

O MARIDO ========= 4

Muitos papéis ocupavam a mesa de Rodrigão, mas nada era urgente. Bem, nem que fosse... A preguiça da digestão levava-o a desejar o aconchego de sua cama. Para que trabalhar numa tarde garoenta? Aliás, fora tão grosseiro com Cláudia, logo ao despertar... devia-lhe desculpas... e nem tinha ido almoçar em casa... se empanturrara de macarronada no Kilo Suave.
Ah, Cláudia, a instável Cláudia! Tão dona de tudo! Completa! Mulher de sabedoria! A quem amava!
Argumentou consigo mesmo:
- Farei algo diferente, hoje! Decreto feriado particular! Vou levar-lhe um belo dum ramalhete de flores...
Eufórico, fechou os olhos ante a papelada, desligou o computador, trancou portas e janelas e saiu assobiando um estribilho animado, rumo à esposa Cláudia.

O FILHO SOLDADO ========= 5

O cabo Garcia reuniu seus quatro melhores amigos, companheiros de farda do Tiro de Guerra. Lotaram o fusca do soldado Romão que, tossindo pelas ladeiras, transportava a moçada para assistirem ao jogo Corinthians X Santos. Local? A grande sala da casa de Cláudia. De quebra, o cabo Garcia aventou a possibilidade de a mãe Cláu estourar umas pipoquinhas...
O valente carrinho seguiu, veloz, ao destino, com os cinco rapagões espremidos dentro dele. Temiam perder o chute inicial e o Romão teve que acelerar.

A FILHA ========= 6

A aula transcorria animada demais. A mudança de temperatura alterava o metabolismo da jovem e aplicada aluna. Preocupada de que o toró anunciado se despejasse, catou os livros, desculpou-se com o professor e ausentou-se. Pilotando a moto, rezou para que o tempo aguardasse ela passar na Academia, pegar o namorado-campeão e dispararem juntos, para o refúgio do lar.

OS BANDIDOS ========== 7

Catorze horas e trinta minutos daquela tarde inesquecível!
Nove pessoas defronte ao portão onde Cláudia aguardava o táxi, chorosa, com a bagagem arrumadinha, descansando a seus pés. Aliás, nove, sem contar a anfitriã desavisada, o chofer e os meliantes.
Sr. Fagundes foi estacionando devagarinho, tenso, ansioso, quase a desmaiar. As portas do carro se escancararam e dois rapazes mal-encarados saíram correndo, gritando um para o outro:
- Sujô! Se manda, mermão...! É fria, bróder...! Fuzuê, ô meu...! Fui!
Como mágica, cada um correu para um lado da rua e tchau mesmo. Desapareceram!

REUNIÃO DA FAMÍLIA ============ 8

A sogra, dona Arminda, ofereceu os bombons; o Rodrigão, o ramalhete; os verde-oliva adentraram com algazarra; o casal de namorados tirou o capacete e não entendeu bulhufas. Aliás, ninguém entendia o mínimo que fosse do auê inusitado, das maletas, do rosto lacrimoso, dos mimos e de dois indivíduos correndo.
Cláudia dominou a situação, pagou a corrida que não iria mais fazer; reparou na palidez e no sorriso amarelo do Fagundes. O motor do carro continuava funcionando, quente; então, rapidinho, o chofer acelerou em direção à firma, com intenção de abominar o sistema que deveria lhe garantir a sobrevivência na violenta metrópole. Não relatou aos fregueses nenhuma palavra das ameaças... ou da invasão do táxi.

FIM DA TENSÃO ============= 9

A dona de casa virou-se para fechar o portão e nesse volteio, sentiu o fluxo menstrual descendo, saindo de seu corpo, despejando o peso pélvico.
Finalmente!
Alívio instantâneo!
Cláudia olhou para o céu nublado, avaliou-o como lindo e dirigiu-se ao centro do rebuliço familiar.
Na sala, comentou:
- Que dia, hein? Parece que um ciclone tropical andou passando por aqui!




Lóla Prata, nome literário de MARIA DE LOURDES PRATA GARCIA, santista, residente em Bragança Paulista SP desde 1974.
Idealizadora e Fundadora da ASES –Associação de Escritores de Bragança Paulista. Presidente da seção da União Brasileira de Trovadores -UBT . Dezenove livros publicados.
Comendadora Municipal por serviços prestados à Cultura em 2004. Homenagem da Câmara Municipal em 2010. Consulesa Honorífica pela Real Academia de Letras de Porto Alegre RS em 2013 Certificado de AMIGA da Academia Brasileira de Trova – Rio de Janeiro RJ em 2016.                              www.lolaprata.com.br   



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O MESTRE  E  OS  DISCÍPULOS©


3ª Menção Honrosa
HUMBERTO DEL MAESTRO, Vitória/ES 

Tarde morna e doce de abril, quando delicadas brisas mourejam sobre os cabeços das colinas e as árvores dormitam quietas pelos outeiros floridos. Em certo mosteiro budista, um monge convida seus discípulos mais diletos a uma meditação.
Sentados em círculo, frente a frente, cabeças baixas, iniciam a função, irmanados por um silêncio quase total, só quebrado, raramente, pelo bisbilho de lábios, que pronunciam harmoniosos mantras.
A certa altura, sem que nenhum dos jovens esperasse, o mestre, imóvel, indaga de um modo geral, qual o prêmio que cada um gostaria de receber do mundo, caso a sorte os abençoasse. E retorna a sua habitual postura.
Intermináveis minutos decorrem, antes que o primeiro, dentre os iniciados, se encoraje a manifestar-se sobre a pergunta formulada.
- Mestre,  diz o discípulo pioneiro, quebrando a quietude do ambiente,  -se me fosse dado o direito de auferir alguma dádiva deste astro, optaria pela paz. Dito isso, inclina  a cabeça, em sinal de respeito.
Na posição em que se encontra, sem mover um único músculo, redarguiu-lhe com doçura o extremado asceta:
- Grande prêmio pediste. De posse da paz, poderás dotar o mundo de maior compreensão e amor, virtudes tão escassas, nos dias de hoje.
Pouco tempo se passa e manifesta-se o segundo discípulo:
- Mestre, se do mundo tivesse direito a qualquer recompensa, decidiria pelo equilíbrio. E o judicioso ministro dos deuses assim se expressa:     
- Enorme fortuna terias alcançado. Senhor do equilíbrio, conseguirias, por certo, coordenar os atos e emoções dos seres humanos, que se nivelariam, e teríamos, no futuro, um mundo mais congruente e sensato.
Até se ouvir o terceiro discípulo emitir sua opinião, longos momentos se passam:
- Digno mentor, se algo na crosta deste mísero planeta fosse oferecido a este servo do Altíssimo, gostaria de ser abençoado com uma incalculável riqueza.
Desta feita, o sacerdote retarda um pouco  a emissão do seu juízo:
- Também pediste com incrível descortino. Justo como és, tornando-te senhor de imensa fortuna, haverás de ordená-la de tal forma que poderás transformar a sociedade  num verdadeiro paraíso, já que todos sabemos que bens materiais são símbolo do poder. E retorna ao mutismo sagrado de antes.
Quase que imediatamente, talvez motivado pelo entusiasmo, o quarto jovem se dirige ao respeitoso preceptor, nos seguintes termos:
- Ó sábio e consciente representante das sagradas tradições budistas, se me coubesse decidir por algum melhoramento deste orbe, agiria como Salomão, declinando pela sabedoria. O asceta, desta feita, demora-se um pouco mais a abandonar sua quietude, mas quando o faz, assim se expressa:
- Bem vejo os grandes  discípulos que possuo. Tua opção pela sabedoria demonstra os dons maravilhosos que cultivas no coração. Um homem consciente, dono do saber, há de prevalecer, com suas ideias e sua prudência, sobre a mesquinhez humana, e poderá trazer à face da terra os benefícios de que ela realmente necessita, na busca da perfeição e da felicidade. E, como nas vezes anteriores, torna a calar-se. A tarde borda seus últimos sorrisos e as primeiras sombras da noite despontam silenciosas, quando o derradeiro discípulo assim se manifesta:
- Ancião bendito, honra das santas escrituras e das seculares tradições de nosso povo. De prêmio, caso mereça, gostaria tão somente de receber um punhado de humildade.
- Neste momento o semblante do lama se extasia. Ergue a cabeça, até então mergulhada em profundas divagações, deixando extravasar, através de um brilho inefável dos olhos e de um sorriso de indizível ternura e alegria, toda a sua satisfação, em face daquele divino pedido. E responde assim ao amado educando:
- Pediste a fortuna maior, a dádiva mais rara da Terra, portanto, a mais eficaz. De posse da humildade, semearás campos de paz pelos caminhos por onde passares, fazendo florir os corações dos homens. Lançarás equilíbrio, em seus atos e pensamentos, plantarás riqueza e sabedoria a mancheias, em todos os seres viventes, e tornarás este orbe o verdadeiro céu que os deuses sempre sonharam. Pediste a fortuna  mais compensadora do mundo.
E tornando a baixar a cabeça, continua, com os cinco amorosos discípulos, em suaves mantras, a meditação a que se propuseram, naquela doce tarde, enquanto as trevas da noite invadem o mundo, cheio de erros, pecados e incompreensões, em face da carência espiritual dos homens.


Humberto Del Maestro nasceu na cidade de Vitória-ES, onde concluiu seus principais estudos e iniciou sua carreira de poeta e prosador. Possui, no momento, 59 livros publicados, em prosa e verso, e mantém uma coluna literária denominada Literatura  &  Arte, aproximando-se das  2.000 edições, onde divulga autores da atualidade, dentro e fora do Brasil. É detentor de inúmeros prêmios e participa de várias Casas de Letras, incluindo o Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e a Academia Espírito-santense de Letras,  onde ocupa a cadeira 20.



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Na loja de ervas©

1ª Menção Especial
CRISTINA BRESSER DE CAMPOS, Curitiba/PR

Sinto o chão frio da calçada de cimento sob o meu corpo. O vento está forte e ainda nem é outono. Logo se aproxima da porta um grupo de jovens lindas. Aproveito-me da confusão e entro junto com elas na loja de ervas. A dona pousa o olhar em algum ponto acima dos meus olhos amarelos. Com um meio sorriso fixado no rosto vincado, se dirige às moças. Mas seu pensamento divaga: “Esvoaçantes, meninas-borboletas sorridentes, barulhentas. Borboletas recém-saídas do casulo. Será que pensam um dia envelhecer? Criar rugas no rosto, hoje papel-arroz? Rugas pelo filho doente, amor não correspondido, escassez de proventos? Meninas-moças que vivem atrás de poções mágicas para conquistar namorados. Ah, meninas-borboletas, brilho tão reluzente quanto fugaz, usufruam a dádiva da ignorância de serem finitas: simplesmente, voem. ” Assim elas o fazem. Mal acabaram de entrar e já saem voando, com seus pacotinhos de ervas e poções mágicas dentro de suas bolsas de grife. Quando vão aprender que amor não se atrai com feitiços? Porque amor é feitiço. Mágica indissolúvel quando os dois corpos se fundem e se transportam para uma dimensão além do tempo e espaço. Além das palavras. Além de tudo que não seja sentimento e sensação. A velha das ervas conhece este amor. Me olha atravessado quando lê meu pensamento. Ela, que sabe misturar grãos e condimentos para curar a tristeza no coração das gentes. Como não conheceria o amor verdadeiro? Por que pensar em amar lhe deixa vulnerável e insegura? Me encara e dá um sorriso torto, porém doce. Dirige-se para os fundos da loja. Fico em dúvida se ela voltará com uma vassoura para me espantar ou se simplesmente vai me deixar lá naquele canto, abrigado do frio e da noite. Ela retorna carregando uma coberta macia e um pires. Sou recompensado por minha astúcia com leite morno. Leite temperado com canela. Ronrono de satisfação e me esfrego em suas pernas. A senhora se rende, por fim. Abaixa-se meio encurvada, afaga minha cabeça macia e me presenteia com um sorriso genuíno. Durmo bem.


Cristina Bresser de Campos. Comunicação-UFPR. Oficina Escrita Criativa, 2013,Otto Winck. Autora conto Capitolina, Livro Torre de Papel, 2015. Oficina Romance, Cezar Tridapali, 2016. Curso de Creative Writing da University of Edinburgh, 2016. Primeiro lugar, conto Captolium, Concurso Literário do Núcleo Direito e Literatura, Fortaleza, 2016. Lançou seu romance, “Quase tudo é risível”  Editora Benfazeja, 2016.
Cristina Bresser de Campos




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Senilidade©


2ª Menção Especial
ANDRÉ EITTI OGAWA, Florianópolis/SC

Tudo se tornou socialmente aparente quando Helena transformou o almoço de segunda – miúdos ensopados de galinha, coxa da asa frita e pirão d'água – em puro carvão. Não havia algo que pudesse ser identificado com facilidade. Uma crosta escura e malcheirosa tomou por inteiro o fundo das panelas de ferro e de barro que Helena havia herdado de sua finada matriarca.
Não fosse pelo senso olfativo apurado de Gildo - o vizinho - (no primário, Gildo era por todos chamado “rouba-ares” e “focinho avantajado”) e sua inesperada destreza como apagador de incêndios, o casebre meio alvenaria, meio madeira, já teria sumido por completo da vila Santa Lurdes, porção sudoeste de Hermes de Junqueira.
O fato é que Helena, depois de dispor as panelas no fogão e reforçar a chama com lenha de araticum, foi até a varanda emendar a calça preferida de Tácito - o companheiro - e lá se estabeleceu por uma hora e um quarto. Tanto ele, que cabeceava de sono, ao seu lado, lendo o jornal, quanto ela, que costurava, sequer sentiram a emanação da fumaça que pôde ser percebida por toda Santa Lurdes.
Após apagar os focos possíveis, Gildo, com fuligem na alma, caminhou até a varanda, com os braços abertos, mãos espalmadas, ombros encolhidos, ar interrogativo, e fora recebido simpaticamente com “Bons dias Alfredo”, por Helena.
“É Gildo”, bradou Tácito.
O casal, que juntara os trapos sessenta e sete anos passados e criara oito filhos, só entendeu a dimensão do problema quando viu no teto da cozinha as marcas chamuscadas do acontecimento. Helena somente se recordava de ter buscado no paiol os tocos de madeira que utilizaria para o fogão. 
Foi desconcertante para Emílio, Soraia e Murici - os filhos residentes em Hermes de Junqueira - reconhecerem, mas os velhos, mais do que nunca, requeriam cuidados. Em realidade, já haviam percebido indícios desta necessidade, contudo, sem conseguir pensar em soluções imediatas, acabaram por jogar o problema para frente.
Certo dia, por exemplo, depois de dispensada mais cedo da repartição por falta de tinta para os carimbos, Soraia resolveu aproveitar o tempo livre alongado para fazer uma visita surpresa. Encontrara o pai quase cozido no latão de banho quente e a mãe, distraída, alimentando as labaredas por debaixo da banheira. Murici, numa escapada do escritório, flagrara Helena alimentado peixes mortos e há muito tempo pútridos no aquário. Emílio, num almoço de final de semana, deu com Tácito temperando a salada com o alpiste dos canários.
Depois de uma longa reunião com direito a troca de farpas e, inclusive, cobrança de dívidas dos tempos do passado longínquo, os três decidiram por financiar a contratação de Marinalva, uma antiga conhecida da família e que labutara na criação de pelo menos cinco dos oito irmãos. De Emílio, aliás, Marinalva trocara as fraldas e limpara as nádegas sujas.
Todos sabiam que não seria exatamente um passeio no campo florido numa tarde de sol a entrada da cuidadora na casa, mas o que ninguém esperava era que Tácito a expulsaria, logo pela manhã, a sopapos e pontapés. Depois do carteado ante sono com sua senhora um dia antes, Tácito pura e simplesmente deletou da memória que Marinalva começaria no dia seguinte, antes do galo cantar – recado dado e reforçado por Soraia – e a confundiu com uma ladra mequetrefes. Mal a chave rodara o tambor, estava já o velho a aguardá-la com o chicote nas mãos, que usava para tocar os cachorros da sala de estar.
Obviamente, as notícias correram e, de forma natural pós-traumático, se tornou muito difícil uma nova contratação e somente as desavisadas e forasteiras se atreviam a confirmar as datas e horários das entrevistas de emprego.
Foi numa tempestuosa tarde de domingo que Emílio teve sua sesta interrompida com batidas firmes nos ombros. No portão de vime recostado, observou, com as roupas banhadas em barro e chinelas nas mãos, Gildo, esbaforido e arquejante.
Tácito havia sido avistado caído junto às acácias do quintal, com meia face sob a água e a mão esquerda no peito. Os sessenta e três anos ininterruptos da cigarrilha de palha haviam pesado e os pulmões arriaram quando o velho fora recolocar sobre a moita um ninho com sete ovos.
Quando retornou à vivenda, depois de semana e meia internado, Helena custou a reconhecer o marido com a máscara de oxigênio no rosto e dois tubos que se conectavam a um cilindro.
A dependência de Tácito, para sobreviver, de todo aquele mecanismo de fios e bombas, curiosamente conjugou num espasmo de lucidez plena por parte de Helena.
A idosa voltou à lida doméstica com uma aplicação e um discernimento que fez Murici lembrar de tempos remotos em que a mãe não colecionava no rosto rugas e outras marcas dos anos. Além dos afazeres da casa, Helena dedicava-se aos tratos do marido. Todos os dias lhe dava dois banhos, o vestia com roupas largas, duas meias e uma touca, colocava em infusão os cabelos de milho para o chá do desjejum, adiantava o preparado de babosa para os rins e, antes de dormir, esparramava sobre o corpo a loção de calêndulas.
No momento em que a estação de frio chegou, Helena caiu com tísica bronquiolar e fora levada à enfermaria de Hermes de Junqueira às pressas. Gildo, fazendo jus à alcunha de providente, a carregou sobre os braços com a ajuda de Soraia.
Na madrugada, batiam três e quinze quando Helena fechou os olhos perpetuamente. No casebre meio alvenaria, meio madeira em Santa Lurdes, Tácito dormia eternamente com a máscara de oxigênio nas mãos.



André Eitti Ogawa, natural de Garça-SP. Atualmente reside em Florianópolis-SC, onde se pós-graduou em História e atua como técnico em assuntos educacionais no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina. Ativista social e dirigente do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica.



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A gravura sem nome©



2ª Menção Especial
JOSAFÁ DE ORÓS, Campina Grande/PB


Um pouco de verniz num pote, as cerdas duras do pincel, a boneca de algodão toda amarrotada com supostas digitais, as unhas amarelecidas e uns veios cor de terra siena escurecendo as duras cutículas, um copo de vodca vazio. Lascas de limão com formigas meio atônitas desenhavam o beiral do copo, antes de se enfileirarem em direção ao sanitário. Os óculos aos pedaços no chão, pequenos fragmentos com grau acentuado sobre o libreto aberto d’A paixão Segundo São Matheus, uma edição portuguesa de Cartas a um jovem poeta, com pequena fissura na capa, comprimido sob a coxa direita. Dentro do livro, quase em seu meio, grosseiramente, um canivete carmim marcava uma folha em branco. Dois marcadores surrados sobre o tapete. Nos marcadores, sob uma caligrafia nervosa e pesada, três anotações curiosas. Grafite de mistério, força e gênio incomum que não se apaga fácil.
Acima da escrivaninha, sacrificada a prego como Cristo, na parede, aquela litografia anônima, não numerada, era a lembrança mais viva. Ali na sala, além da gravura mostrando uma apavorante cena com animais bizarros em sanguinário conflito, mais duas pinturas tristes e uma pena de pavão albino apontando para o teto manchado. Uma bela escultura de Dom Quixote com a lança quebrada, fazia reluzir em seu escudo símbolos arcaicos desconhecidos. Um pote de latão, em formato de hídria antiga, trazia esbeltas figuras egípcias em negro e exibia, sob uma moldura de irretocável silêncio, duas margaridas murchas, despetalando-se. A hídria sobre os papéis era peso que resguardava o bilhete do vento irrequieto que chegava pela fresta entre o parapeito e a janela. A porta com os dois ferrolhos tortos, banhada de um azul cerúleo meio craquelado, donde gritava fosco branco de zinco, ainda estava fechada. Na verdade, vedada, e bem vedada, inclusive com a escura e aromática cera de abelha tapando estreitas frestas e minúsculos furos. O relógio sobre a bandeira da janela, relógio antigo e do mais lindo móvel, carregava a poeira indelével do tempo. Havia estacionado o peso das horas sob as suas costas. Um relógio com cara de ancião exausto, dominado pelo próprio tempo, deixou o ponteiro grande deslizando sobre o pequeno há dias. Sísifo encalacrado! Caixinha de dolorosa música. Mãe de um ruído leve e intermitente, de insuportável repetição, maçante. Massacrava ao seu modo meus tímpanos de uma maneira tal que, passados longos dias, minha cama repete de maneira sistemática um estalar estridente e silente, contraditoriamente. É como se quisesse armar uma conversa com os mestres do tempo.
Um clima espantoso se desenhava desde o momento em que vi aquele sujeito inerte no chão. Não era algo pavoroso, mas havia um quê de medo em todo canto. Dependurado nas linhas da casa, feito morcegos de feltro, lançando suas sombras nas paredes, um medo entrava pelos poros, se entranhava em minhas vísceras. Era como se o mundo e o meu mundo tivessem alicerces de vento e fossem ruir a qualquer momento e despencar para um mundo sem chão, infindo abismo no meio de um belo sonho. Mundo enevoado, terno em seu silêncio, sem fantasmas.
Parecendo-se com algo triste quando bate a nossa porta ou invade de surpresa nosso coração. Se demorasse muito olhando pra maquinaria inerte daquele medidor do tempo veria, sei, anões lá dentro armando o estapafúrdio contra mim. As ferramentas largadas ao lado. Anões com seus barretes maquinando, ignóbeis desocupados. Aquilo para mim era uma coisa insana e mexia com os meus nervos. Provocava-me um suor estranho. Uma tremedeira nos lábios e nas pálpebras.
Nessa estranheza sem par, de repente algo me assaltava os sentidos e eu ficava, por segundos, inteiramente entregue a um inferno escuro, onde anuns de fraque me olhavam e me desejavam. Mas meu corpo tremia sob intransigentes e coloridas sinapses. Epiléticas pinceladas de azuis. Serpentinas vorazes em torno de mim. Gritos descalços de certo Van Gogh em meio ao trigal maduro. Corvos negros ponteando todo o céu. Espocares distante de estrelas. Nascença descontrolada de mundos. Meus céus!
Com os olhos fechados, os meus cegos de guia. Os meus Borges entre livros. Os olhos brancos de Homero. Um tocador de marimba de pau esmola o seu armorial lamuriento. Mendigos de feira. Caolhos batem a janela! Camões nas nuvens sobre o Tejo. Pensava eu, que aquelas imagens e o pulsar feroz das minhas veias me vinham porque apareciam como as únicas saídas. Pontinhos de luz eram sinapses e silêncios querendo beber palavras. Palavras nuas. Palavras pulsando em suas placentas de vidro. Alegravam-me e os meus olhos novamente ofuscados.
A sensação plena de que ali se desenhavam novas fronhas, alforjes para levar palavras sem armaduras. Palavras para martelarem suas entradas novamente e de volta e a noite. Navegantes sem rumos nos interstícios da minha cabeça, nas gavetas, nas cisternas desconhecidas. Sonhos, sonhos. Era ali, cria eu, que encontraria os manuscritos perfeitos, mundos sobre os quais eram esboçados os caminhos que me salvariam. Certamente me salvariam! Mas, me salvariam de quê? Não sei!!
Sempre que involuntariamente fechava os olhos em cochilos e sonhos, sentia que algo me fazia provar a sensação do eterno, ainda que em momentâneos estalos. Ciclopes musculosos, de cabelos encaracolados, do nada apareciam e me salvavam a lance com confortáveis puçás quase transparentes feitos de gaze, costurados com lisa e fina linha de seda, apanhavam-me no ar, apanhava-me na minha particular brevidade. Um pulsar!
A inglória luta ‘sisífica’, ao que parecia, queria novamente se apresentar como o dedo de Estamira, sem deixar minha cabeça vaga por um minuto. Nem um segundo sequer! Desde que deitei meus olhos sobre a mancha do vidro da janela, meu olhar ficou preso entre a cortina e a parede. Fora, certamente, tecida iniludível trama, mandinga botada naquela mesinha, ali, enquanto os anões tomavam café e comiam a mancheias pequenos biscoitos de coco.
Não havia nada mais a dizer sobre o caso do poeta. O que imagino que toda vila supunha confirmava-se a cada fragmento encontrado. Um silêncio estranho dominava cada casa e o quiosque da esquina. Pela vidraça tinha isso como pintura!
Os meses que havia passado fora, aspirando energias daquele verão, tinha-o, na prática, transformado no mais importante escultor hiper-realista depois do gênio de Ron Mueck. A figura humana perfeita e nua que sob a coxa direita prendia o livro de Rilke não passava de mais uma obra do gênio inominado. Havia transferido sua alma pura e gravemente inconformada àquela bela figura e fugira sem destino Quase atordoado como um cidadão comum, levou consigo apenas a roupa do corpo e a misteriosa sanguínea que habitava por trás daquela gravura sem nome.
Fazia menção dela, deixando anotado num retraço de papel, no quarto, ao lado do livro, manuscritos, dos contos A Predição de Sebastian e o Ocaso de Arthur. Textos, aliás, jamais publicados e que havia mencionado em seu testamento.
A página que parecia em branco trazia escrita em leite, herança mordaz de Vladimir Ilitch, que só poderia ser lida sob a luz de lamparina ou candeeiro. Trazia o nome da tal gravura e o nome do seu autor bem como o dia e o local no qual morreriam os dois personagens dos sonhos que subjaziam à gravura. Haviam também se envolvido nos contos, mas neles não se aprisionaram.


Josafá deOrós, nome literário de Josafá Paulino de Lima nasceu no Município de Orós, Ceará em 1965. Desde os anos 70 veio para a Paraíba. Reside em Campina Grande onde desenvolve ações nos campos da cultura e das artes. é sociólogo formado pela UFPB. Como artista plástico participou de dezenas de mostras coletivas e individuais no Brasil e no exterior. Cuba, França, Portugal, Espanha etc. Em seu histórico, destacam-se produções recentes como poeta. Foi laureado com o Primeiro Lugar da FLIBO 2010, classificado no Festival Tataguassu de Poesia. Com o poema A palavra, lavra foi laureado com o Troféu Natividade no Município de Paranavaí no ano de 2016. Obteve o segundo lugar no Concurso Nacional/Novos Poetas concorrendo com mais de 2.700 poetas. Em 2015 obteve o segundo lugar na Categoria Máster no concurso nacional cidade de Ourinhos-SP. Segundo lugar também  no concurso Roberto Tonellotti de Poesia; 1º lugar Local/Regional na categoria Miniconto da FLIBO 2017. Tem publicado sua produção em antologias pelo Brasil.



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DESPEDIDA©


2ª Menção Especial
JOSINA NUNES DRUMOND, Vitória/ES


Enquanto não se descobre a fonte da eterna juventude, nós, simples mortais, almejamos vida longa e saudável. Já que a morte é inevitável, que seja mansa, sem dores e sem sofrimentos. Isso foi conseguido por Nicole Deschamps, moradora de um vilarejo do Sul da França. Viveu um século gozando de ótima saúde física e mental. Seus filhos se casaram e se multiplicaram. Cada um seguiu sua sina mundo afora. Apenas ela permaneceu apegada à terra natal, ao jardim, à casa e a seus dois companheiros inseparáveis:  a biblioteca e o piano.  Uma vez por ano, proporcionava aos mais íntimos um recital de piano, para o qual treinava cotidianamente.
Com o tempo, aprendeu a apreciar o silêncio, parceiro constante da solitude. Dia após dia, clarões de lembranças adentravam-se pelas janelas da rotina. Gostava do cantinho escolhido para aguardar o fim.  Não era luxuoso, nem grandioso, mas aconchegante e repleto de reminiscências. Bastava fechar os olhos e viajar no tempo, para reviver a vitalidade e a alegria ali reinantes durante décadas. Filhos, netos, bisnetos correndo subindo e descendo a escadaria; mesa grande e farta rodeada de olhos cobiçosos; narizes sensíveis e paladares vorazes.
Nicole morava sozinha. Vivia totalmente independente da família. Tinha uma doméstica para as tarefas pesadas, mas era ela própria que pilotava o fogão e os eletrodomésticos. Aos noventa e oito anos, certo dia, escorregou, desequilibrou-se e caiu. Não houve fratura, mas ela não dispunha de força suficiente para se erguer. As vãs tentativas duraram horas, até que, depois de ter-se arrastado, conseguiu se apoiar num móvel e se aprumar. No dia seguinte, ao receber a empregada, disse-lhe:
– Isabelle, vou morrer daqui a dois dias.
– Como assim, Madame?
– Estou velha. Não quero mais viver.
– Mas a família precisa ser avisada. Façamos um encontro de despedida. A senhora não pode partir sem dizer adeus aos que a amam.
Está bem. Então convoque-os.
No final de semana seguinte, a família reunida tentou dissuadi-la do intento. Durante o almoço de domingo, estando à mesa, ela pediu a palavra, agradeceu a presença de todos e explicou o motivo de sua decisão irrevogável.
– Vivo sozinha, nesta casa desde que vocês se foram. Gosto do cantinho onde ancorei minha solidão. Aqui tenho sossego. Sempre tive boa saúde, mas as restrições da idade são implacáveis. Não gostaria, em hipótese alguma, de ficar dependente de outrem para as necessidades básicas. Enquanto tive autonomia para viver sem ajuda de quem quer que fosse, não pensei na morte. Nesta semana, levei uma queda e tive muita dificuldade para me levantar. Qualquer dia desses, pode me acontecer algo pior. Não quero tropeçar na própria sombra, nem me sustentar em bengalas de decrepitude até que uma enfermidade qualquer me leve daqui. Tenho o direito de acabar, quando quiser, com a dor de existir. O tempo não tem pressa, mas eu tenho. Prefiro partir antes da chegada do sofrimento. No entanto, gostaria de ficar eternamente rodeada por essa linda família, que tanto amo.
– Mas, mamãe, disse Paul, pretendemos fazer uma grande festa, daqui a dois anos, para comemoração do centenário de seu nascimento. Será uma cerimônia inesquecível para todos os descendentes. Depois disso, a escolha é sua, já que, mais cedo ou mais tarde, a partida é inexorável. Não discordo de sua decisão. A meu ver, todos deveríamos ter o direito de escolher como, quando e onde vamos dar o último suspiro. Mas, por favor, não encurte seu caminho. Espere pela festa. Fazemos questão disso.
– Está bem. Já que é importante para vocês...
– Ôba!!!
Todos aplaudiram em sinal de contentamento, fizeram um brinde à sua saúde, e partiram aliviados.
Dois anos se arrastaram, morosamente. Nicole se sentia cada dia mais fraca. Dez dias antes da festa, decidiu que, dali em diante, não comeria mais. Tomaria apenas líquidos, para aguardar o encontro do adeus. Informados da estranha decisão, os filhos decidiram mantê-la sempre acompanhada, para que não cometesse nenhum desatino. Não poderia lhes fazer a desfeita de partir antes da hora (como se a festa fosse mais importante que a partida). A celebração, organizada com pompa e entusiasmo, não tinha nuances sombrias de despedida, nem de luto.
Debilitada pela inanição, manteve-se assentada o tempo todo, durante a festa, sem grandes alegrias nem desassossegos. Seu olhar percorria o amplo salão: os antigos lustres de cristal, os móveis estilo Luís XVI, a imponente escadaria com corrimão dourado, as paredes decoradas com quadros valiosos de Corot, Delacroix, Renoir, Gauguin, preciosidades passadas de geração em geração; provável motivo de desavenças, na hora da partilha. Fitava tudo e todos longamente, como se fosse pela última vez. Parecia querer levar, para o além, as minudências da vida, presas à memória visual.
A decisão de não deixá-la sozinha foi mantida durante a festa. Para surpresa de todos, ao lhe servirem suco de uva, ela exigiu seu champanhe preferido, Veuve Clicquot, chamado afetivamente por ela de “La Grande Dame”. Após tragos e mais tragos, num vislumbre de outrora, Nicole chegou a esboçar alguns passinhos de dança, sob entusiásticos aplausos.  Sentia-se radiante, como centro de todas as atenções. Disse que não faria discurso de despedida. No entanto, ao se ver diante de um microfone e de dezenas de olhares interrogativos, não resistiu.
–Meus queridos! Como lhes disse, há dois anos, se pudesse, eu ficaria eternamente com vocês. No entanto, tenho que respeitar as leis da natureza. Diz o adágio popular que cada um tem sua vez e sua hora. Agora é minha vez de partir. No futuro, estaremos todos em outra dimensão, dentro da grande incógnita, da qual nada sabemos e de onde não poderemos voltar. Por isso, meu último conselho é que vivam a vida em toda sua plenitude. Não desperdicem tempo com inutilidades nem patifarias. Saúde e vida longa a todos vocês. Tim-Tim!
A festa transcorreu normalmente, mas com visível ansiedade no ar. Ninguém ousava lhe perguntar como nem quando seria a partida. Tratava-se de uma decisão de foro íntimo, pessoal e intransferível.
Na manhã seguinte, todos se dirigiram à sala de refeições, para o desjejum. Somente a vovozinha continuou em sua alcova. Um sono profundo, de conluio com a eternidade, providenciara seu último desejo. Partira dormindo, no oco da madrugada, sem sofrimento algum (como desejava), deixando, no aconchego do leito, apenas a carcaça para as devidas exéquias e prováveis prantos.


Josina Nunes Drumond (Jô Drumond) Professora, pesquisadora, tradutora juramentada, Artista plástica, Escritora e poeta. Tem pós-doutorado em Literatura Comparada (UFMG). É doutora em Comunicação e Semiótica (Puc/SP) e mestre em Estudos Literários (Ufes). É pós-graduada (lato sensu) em Artes (Ufop) e em Literatura (Ufes). Graduou-se em Letras (UFMG), Língua, Literatura e Civilização Francesas (Univ. de Nancy -França), e Artes Plásticas (Ufes). É membro do IHGES e de 3 Academias de Letras: AEL, AFESL e Afemil. Tem 15 livros publicados, mais 3 como organizadora e 2 como tradutora. Tem também publicações em antologias, em revistas de pós-graduação, em anais de congressos, e na Internet ( www.artigosdajo.blogspot.com.br). Tem poemas e contos premiados em MG, RS, PA e ES.



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ASSIM COMO OS ANJOS©


3ª Menção Especial
CELSO KALLARRARI, Teixeira de Freitas/BA


HOUVE UM DIA, O SEGUNDO, o terceiro, o quarto, o quinto, o sexto e, finalmente, o sétimo dia!
Eu não acreditava em anjos, mas meu pai, desde a minha infância, fizera-me acreditar. Em suas narrações, pintadas de deslumbramento, me fez ver o céu; e lá, nas alturas, os anjos, recostados aos pés de Cristo. Um céu verde, verde, verde. Muito verde era o meu céu!
— Você vai ser como um anjo, meu filho, um dia, quando for para o céu! — dizia meu pai com a voz rouca e embasbacada. — Vamos todos pra lá: sua mãe, seu pai, seus irmãozinhos, vovó. Vovô já está lá, esperando por todos nós. Vamos ser felizes, muito felizes!
Desde então, aquelas criaturinhas aladas começaram a fazer parte de minha vida. Os anjos estavam comigo; eram meus protetores, defensores celestes. E, por qualquer lugar que eu fosse, levava comigo Rafael, anjo que eu havia reinterpretado e que pelejava, no plano metafísico, com o antigo daimon. Rafael era robusto, sisudo; tinha a força de um leão e trazia, na bainha, uma espada flamejante.
Na verdade, reinterpretei e inventei vários nomes, adjetivei substantivos, substantivei verbos e verbalizei advérbios. Eles escondiam, etimologicamente, a verdade das verdades, a verdade das palavras. Nessa época, construí, mentalmente, um grande céu somente para os cachorros e degolava os gatos nascituros, siameses, em minha imaginação criativa. Era lindo! Maravilhoso! Pueril e canil, ao mesmo tempo, mas era o meu céu com uma variedade tremenda de ossos, um cemitério enorme. De repente, parecia que aquele céu havia se transformado num grande e eloquente campo de concentração nazista, o Auschwitz. O céu era, agora, um lugar horrendo, desolador e evocava tantas almas sofridas, amargas, injustiçadas; pessoas que eu havia criado e registrado no bas-fond do meu dicionário mental.
— Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos — vociferava uma voz, interiormente. 
Desde criança, sempre tive medo que o mundo acabasse. Mal dormia, à noite, pensando que um dia iria morrer. Afinal, na minha infância, não tinha ninguém para me explicar essas coisas. Na adolescência, meu pai já havia morrido. Devia estar lá em cima, no céu. Minha mãe ausente, trabalhava o dia inteiro. E eu apenas sabia que os anjos existiam, estavam lá longe, no céu e na terra, ao mesmo tempo. Não podíamos vê-los, mas existiam e ponto final.
Pronto, um dia, todo aquele semitismo tinha de entrar goela abaixo e as minhas indagações poderiam esperar. Deus, afinal, é paciente. Quem sabe alguém me explicará essas coisas um dia. Ou, um dia, encontrarei com Deus numa esquina lá do céu e, extasiado com suas maravilhas celestes, lhe direi que é bonita a casa que Ele preparou para os seus filhos.
— Porque as pessoas estão ainda vivendo lá na terra e gostam muito de lá? Elas não querem vir para cá, para o céu! “Deve ser porque, aqui, no céu, não tem videogames, smartphones, ipads, iphones e uma parafernália de coisas das novas tecnologias, nem, ao menos, televisão e muito menos futebol. Entretanto, no céu há futebol, não a estilo brasileiro. É porque, no céu, ninguém marca gols, os gols já estão todos marcados, acreditem!
O certo é que, durante toda a minha vida, acabei acreditando nos anjos. Na doutrina dos saduceus e casei-me com o Pentateuco e não assistir ao jogo, cuja seleção brasileira se tornou Pentacampeão. Agora, meu time era uma legião de anjos tentando ganhar um jogo começado no Gênesis e, sem fim, previsto no Apocalipse.
No jogo, não havia juiz, nem técnico, nem capitão. Só havia segundo tempo. Mas aquele jogo não terminava nos tempos normais de uma partida. Um tempo de tempo e metade de um tempo e os anjos não cansavam de jogar.
Era incrível a correria! Ninguém suava a camisa! Ninguém ficava cansado!
Às vezes, o time adversário goleava o meu, mas a virada era certa. Depois de um show de bola, a rede trepidava e eu ficava vendo, estupefato, querendo um dia ser um anjo para jogar naquele time. Um dia eu entraria no gramado, pois o Espírito é quem vivifica, a carne de nada serve. Então, minha presença metafísica como artilheiro iria provocar a torcida adversária e inimiga. Eu estava escalado para os minutos infindáveis, ou seja, no derradeiro momento da partida, eu entraria, porque os últimos serão os primeiros. A vitória era certa e a relva verde, verde, verde do campo não seria estragada, calcada pelas travas douradas das chuteiras.  Da arquibancada, a voz de meu pai ressoava, vibrante, misturada à da torcida celeste.
Mas outra voz, trêmula e sibilosa, dizia.
— A carne e o sangue não podem jogar no Maracanã!
A minha concepção de relva não estava sujeita às condições biológicas, nem ao cansaço, e, muito menos, à necessidade de água. Eu queria, naquele momento, jogar naquele time, que não era o rubro-negro, mas que se apoiava na lei do levirato, ou seja, no sexto mandamento do livro sagrado. Com efeito, nada, nenhuma hipótese poderia invalidar aquele jogo.
Entretanto, sete anos se passaram, e eu quis pôr uma torcida, uma ilustre líder feminina, ambígua, dúbia, para vibrar, humanamente, por mim no jogo. Mas, antes de finalizar a partida, ela se tornou frágil, insegura e infiel. Não teve forças suficientes para clamar como os demais torcedores convictos. Então, de repente, num dia chuvoso, de nebulosidade instável, ela trocou de time.
Naquela tarde de verão, quando o sol ainda brilhava, abaixo das nuvens, no crepúsculo vespertino, sempiterno, ela tirou sua camisa de puro algodão. Estava manchada de sangue. Idolatrou um time novato, desconhecido. Acredite, o time era de segunda divisão. Ela perdeu de vez a ética, seus valores e limites. Sim, ela perdeu o meu céu, e eu continuei acreditando nos anjos, que eles existem, que estão por aí, invisíveis, por toda a crosta terrestre, porque se eles fossem vistos não seriam anjos.
Um dia, quiçá, depois que o desenlace chegar, e Deus ser desvendado, seremos como os anjos no céu.


Celso Kallarrari, أبونا سيلسو, é escritor, padre ortodoxo e professor universitário. Licenciado em Letras, graduado em Teologia, mestre em Educação e doutor em Ciências da Religião pela PUC-Goiás. É autor dos livros A Porta Remendada (2003), As Últimas Horas (2009), As Últimas Palavras (2013) e O Ritual dos Chrysântemos (2013), além de livros e artigos científicos em outras áreas.
Universidade do Estado da Bahia – BUNEB




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O DEVER E O DESEJO DE PIATé



3ª Menção Especial
JOÃO LISBOA COTTA, Ponte Nova/MG

“Nunca estamos preparados para o
que esperamos”. James Michener.

Ainda se fazia noite; viam-se poucas estrelas; nuvens negras e pesadas percorriam o céu ao sabor do vento; o ulular de um animal invadia o ambiente. Após uma dança breve e enigmática, o xamã colocou a mão direita no ombro direito de Piatã e disse em tom grave:
- Piatã, vá até a montanha onde moram os deuses; já é lua
  nova; verdadeiramente, se iniciam os preparativos no qual
  você mudará o seu e o nosso destino. Lá, os deuses lhe
  dirão como proceder e a inefável promessa que lhe será
  reservada.
- Filho de Urihi, anseio por esse dia. Tenho sonhado com
  um templo cuja forma desconheço, mas concebo com uma
  clareza assustadora a sua geometria.
- Piatã – disse o xamã – hoje, a você será revelado o nome
  desse venerável lugar. Todavia, antes de subir, ingira esta
  beberagem composta de ervas sagradas; ela o levará a um
  estado de transe, o qual facilitará a sua comunicação com
  as deidades e os entes da natureza.
Bebeu aquele líquido tânico e turvo com um único gole; quase em seguida, com a voz arrastada, comentou:
- Fico feliz em depositar tanta confiança em mim.
Os primeiros lampejos solares inundavam a manhã quando Piatã chegou ao sopé da montanha. Um claro frescor matinal serenamente apoderou-se do ambiente. Os pássaros gorjeavam numa alegria sublime, celebrando o mistério do alvorecer. Uma profusão de cores e aromas surgia paulatinamente à medida que a noite declinava. Piatã olhou de modo fixo para o páramo; teve uma experiência multissensorial. Sentiu a teofania, o influxo que emana do universo; percebeu os espíritos das divindades e dos antepassados, que lhe confessaram que o poliedro sonhado, o templo, chamava-se pirâmide, o qual, escondido de modo inencontrável nas entranhas da densa floresta, nunca fora violado e velava o segredo do clã. Também afiançavam que, caso ele reconquistasse o território que um dia pertencera ao seu povo e que agora estava de posse da inimiga tribo, que habitava a planície que se estendia além o grande rio, poderia penetrar na pirâmide e lá conhecer as faces dos deuses e de todos os seus ancestrais. Por fim, provou o dever, a responsabilidade que pesava sobre seus ombros.
Piatã voltou à sua aldeia sem observar por onde caminhara; embora resoluto, ficara um pouco apreensivo com a missão que o aguardava. Ao pisar na clareira, o xamã o convidou para uma conversa a sós em sua maloca. Demonstrando certa alegria, o pajé declarou:
- Você é o Grande Jaguar; desde que nasceu sei do seu
  destino. Só homens de coragem e virtude podem receber
  tal incumbência.
- E se eu decepcionar, filho de Urihi; o que sucederá?
- Tal possibilidade não me foi confidenciada; os deuses são
  reservados. Presumo que um dia você tornar-se-á um
  nume, pois é um escolhido. Entretanto, - continuou o
  feiticeiro – deve preparar-se; a tão aguardada batalha que
  nos restituirá a liberdade e nossas terras deverá acontecer
  na noite em que o disco da lua ficar perfeito, o que 
  coincidirá com o solstício de inverno, a duas semanas.
Era a hora da soalheira; um bochorno vindo do leste fez Piatã transpirar. Acatando o conselho do feiticeiro, o Grande Jaguar dirigiu-se para a floresta e mergulhou numa ascese; o seu povo deu início aos preparativos do esperado combate.
Os índios recolheram pigmentos para a confecção de tintas das pinturas ornamentais de guerra; colheram ervas medicinais e alucinógenas para as infusões; entoaram cânticos destinados para ocasiões muito especiais; dançaram; caçaram; contudo, Piatã permanecia incomunicável na mata, num transe visionário, a interagir com os espíritos de cada coisa viva ali presente. Era necessário compreender tudo, recolher forças.
Na grande floresta tropical, o inverno imprimiu poucas transformações na estação, visto que a floresta continuava quente e úmida. Uma borrasca caiu um dia antes da data predeterminada, deixando o ar impregnado ainda mais de vapor d’água. Após a última aurora que antecedeu a almejada guerra, o xamã fez um panegírico em louvor ao Grande Jaguar; rendeu votos e ofertou animais recém-carneados aos numes que os protegiam; invocou abstrusa magia.
Como era o solstício, o disco da lua surgiu perfeito mais cedo. Na calada da noite, o Grande Jaguar com seus homens partiram determinados no intuito de surpreender os execráveis. Fora uma batalha árdua, que durou dois pores-do-sol. Encontraram uma forte resistência, no entanto, Piatã lutou e liderou com valentia; afinal, representava o encargo de sua vida, conquanto houvesse, em seu propósito, um desejo velado de acolher a promessa.
Nos estertores do histórico conflito, o Grande Jaguar, exaurido, porém quase ciente da vitória, recebe uma impensada flecha perdida no peito. Cai em febre por vários dias. Durante esse período, sonhou sua vida, a dos filhos, dos ancestrais; sonhou o firmamento e a floresta sendo gerados; sentiu o gosto da mandioca, da castanha, do fresco peixe que tanto amava; distinguiu, em meio àquela imprecisão, o xamã administrando poções curativas, até que, num determinado momento, desvencilhou-se de um peso, algo indescritível, e começou a correr pela inextricável floresta numa leveza inenarrável. Percorreu um vasto território; viu animais, árvores e rios que desconhecia, quando, inesperadamente, deparou com a pirâmide prometida. Prostou-se de joelhos e a venerou por um longo tempo. Levantou e tocou sua áspera superfície, ocasião em que notou sua mão transpor, sem opor a mínima resistência, aquela dura e espessa parede de pedra.
Adentrou, enleado, com desembaraço em seu iluminado interior, embora não houvesse nenhuma abertura perceptível para a luz; pôde, finalmente, contemplar os seus deuses. Estes, para seu espanto, eram insólitos, feéricos, de um aspecto cambiante que se assemelhavam às nuvens de densidade tênue. Irradiavam uma paz inexprimível que ele nunca dantes vivenciara; velavam o seu corpo inerte num perfumado altar. Nesse instante, ele intuiu que o tempo era uma quimera; que o sangue não mais percorria suas veias; que já era um espectro, um mero simulacro. Teve vontade de chorar, mas isso se tornara inexequível. Ouviu, ao longe, o lamento de seu povo.


João Lisboa Cotta, nasceu em Ponte Nova, MG; casado, pai de 2 filhas. Médico; especializou-se em cardiologia e geriatria em BH. Lançou dois livros na livraria Ouvidor em BH : Reflexões num campo de lavanda (ensaios, crônicas e poemas 2008). Sinceras Ficções (contos, ensaios, crônicas e poemas 2011). Vencedor de vários concursos literários.



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PRESENTE DE ANIVERSÁRIO©


3ª Menção Especial
MARCELO GOMES JORGE FERES, Rio de Janeiro/RJ



No ano de 1972, no mês de fevereiro, Natanael mudara de escola, passando a ser aluno do Colégio São Vicente de Paulo, tradicional e renomada instituição de ensino do Rio de Janeiro, localizada no aprazível bairro carioca do Cosme Velho.
Naqueles emblemáticos anos setenta, o cotidiano e o ritmo da vida dos jovens pareciam desenhar-se com contornos bem mais românticos e divertidos que os de hoje, e a juventude daqueles tempos - claro, daqueles que podiam se manter indenes e alheios aos problemas políticos e sociais que sucediam então – era composta por muitos jovens cabeludos, e muitos deles pertencentes a uma classe média privilegiada e feliz.
E fora naquele ambiente descontraído, e naquele último ano de seu ensino secundário, que Natanael travou conhecimento, e firmou amizade sincera, com João Inácio. João - como gostava de ser chamado (pois Natanael preferia chamá-lo de Little Joe, em razão de um personagem do seriado televisivo Bonanza) -, era um verdadeiro “gênio” em eletrônica - um precoce conhecedor das aplicações práticas dos invisíveis elétrons, invisíveis mas presentes naqueles sistemas interligados de fios e coisas que tal e que, ao final, funcionavam de forma quase milagrosa.
Astrologicamente falando, Natanael era um típico canceriano, muito caseiro e sensível, um amigo sincero e fiel. João Inácio era um soturno virginiano. Mas, claro que essas considerações extemporâneas não faziam parte dos interesses de qualquer um dos dois amigos naqueles tempos idos, embora pareçam, hoje, ajudar um pouco nas considerações sobre tudo o que lhes ocorreu naqueles dias, naqueles inesquecíveis e maravilhosos anos setenta.
Certa feita, Natanael tivera a ideia de enviarem, ele e João, cartas anônimas a todos os alunos de sua classe – inclusive a eles próprios – sob o pseudônimo de “o porquê”. Nas cartas, faziam anunciados estranhos e enigmáticos e, acompanhando cada carta, que eram reproduzidas, todas, como cópias reprográficas, havia uma folha de papel em anexo onde se estampava um contorno de uma mão (que era exatamente o da mão direita de Natanael) e com a indicação de que aquela era a mão do misterioso “o porquê”. E foi aí que vários alunos se empenharam em verificar as mãos, uns dos outros, tentando o encaixe com o molde das mãos do porquê. Quem seria ele? E como tudo aquilo fora apenas uma tão idílica, inesquecível e maravilhosa diversão!
Quando uma segunda carta foi enviada, só que agora não para todos os colegas da turma, os que não a receberam ficaram chateados e se sentindo preteridos e menosprezados. Sim, houve muitas reclamações e amargos resmungos! “Mas por que não recebi?”
Mas foi só muitos anos, mais tarde, que João Inácio e Natanael souberam, exatamente, como tinham sido extremamente felizes naqueles tempos.

- O que é isso, João?
- É para você!
- Por quê?
- Porque você é ele!
- Palhaço!
- Hoje não é seu aniversário?
- É!
- Então!
- Ah! Um presente...!
-  Sim! Presente! Não futuro ou passado! Mas... presente!
- O que é?
- Abre! Fui eu quem fez!
- Sério?
- Sério.
- Cara! Que legal! Obrigado, meu caro amigo - grande Little Joe!

Era um “amplificador de som”. Bem, na verdade, Natanael só soube que era um amplificador de som porque João Inácio lhe dissera que era.
Mas nenhum dos dois amigos iria falar sobre aquele presente novamente. E Natanael, ao chegar a sua casa naquele dia, no bairro de Santa Teresa, colocara o amplificador - que media em torno de 50x40x15 cm - em uma parte superior do armário embutido, em seu quarto de dormir. E lá o esqueceria por algum tempo.
E então chegaram as férias, finalmente. Era já o mês de julho de 1972. Nas férias, Natanael costumava viajar para o estado de Minas Gerais, já que sua família era de lá. E foi na cidade mineira de Ponte Nova que Natanael comprara, desta vez, de seu primo Gérson Magalhães, uma linda arma de fogo – um revólver Taurus TA, calibre 22, de cano longo.
- Nossa! Gérson! Que arma linda! Vou mantê-la pela vida toda!
- É extremamente precisa! Própria para tiro ao alvo! Cuidado com ela!
E foi nos últimos dias daquelas mesmas férias, quando Natanael, que já havia retornado a Santa Teresa, em uma noite entediante, achando-se sozinho em sua casa, resolveu transgredir o corriqueiro, e abriu, muito indevidamente, uma garrafa de uísque de seu pai – aliás, um uísque muito especial – um Royal Salute, 21 anos e... bem, ele terminou com metade daquela garrafa azul - de um azul tão bonito que ele, Natanael, achou que estava adentrando, lentamente, em meio a nuvens e pelos céus infindos... E completamente bêbado agora, alheio a tudo e inclusive à própria realidade, achou convidativo fazer algo diferente, algo apenas inusitado, mas muito excitante... e pegou o seu 22  que lindo! – e subiu em sua cama... e abriu a porta superior do armário embutido e deu de frente com aquele amplificador - que estava ali,  desafiante e com aqueles botões enormes, como se fossem olhos arregalados e surpresos... sim! – ele, o amplificador, estava com muito medo!... Ah! Seu filho da puta, safado! ... e bang! bang! bang!...
Agora, semanas tinham se passado, desde tal singelo ocorrido, e as aulas já haviam recomeçado há vários dias no São Vicente. E Natanael conseguiu tomar coragem, pegou o presente de aniversário dado por João Inácio – e que fora covardemente baleado, e que estava agora muito desfigurado -, colocou-o em uma grande bolsa de papel colorido e, decidido, dirigiu-se à casa de João Inácio. Só não sabia, então, como iria contar do ocorrido; mas pediria, sim, desculpas ao seu amigo e ainda rogaria que consertasse o amplificador, pois, já agora, iria mesmo adquirir uma aparelhagem de som para poder, finalmente, usufruir daquele presente dado, com tanto carinho, por seu amigo de tantos momentos felizes compartilhados.
Ao fazer soar a campainha, Natanael ouviu música vinda, em alto volume, de dentro do apartamento de João Inácio, e também sons misturados de muitas pessoas conversando animadamente e ao mesmo tempo. O que está havendo aqui? A porta se abriu. João Inácio, aparentando uma enorme surpresa - e muito bem trajado! -, arregalou seus olhos e, aparentando uma felicidade indescritível, exclamou:
- Natanael! Meu bom amigo! Que legal! Você lembrou-se do meu aniversário! Que lindo! E até me trouxe um presente!


Marcelo Gomes Jorge Feres nasceu em 06/07/1957, na cidade de Niterói, no estado do Rio de Janeiro. Graduou-se em Administração pela EBAP, Rio de Janeiro, em 1979; graduou-se e pós-graduou-se em Direito pela UNESA, Rio de Janeiro, em 2005; pós-graduou-se em Filosofia (EAD) pela Universidade Gama Filho, São Paulo, em 2013; já teve publicados 12 livros (seis em Portugal), de conteúdo poético-filosófico, tendo, ainda, participado de várias antologias desde 1987.



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Parece que falta alguma coisa... ©


3ª Menção Especial
VANDA MARIA JACINTO, Mossoró/RN


Após cumprir com as tarefas determinadas pelo seu pai para aquele dia, ele aproveitava o último tiquinho de tarde, para desfrutar da companhia do irmão mais velho, com quem aprendera a montar o Malagueta – o cavalo do sítio. Desde então, o seu passatempo predileto!
Gostava tanto desse novo amigo, que aproveitava toda e qualquer oportunidade para estar junto dele.
Juntamente com o irmão demarcavam o espaço, e apostavam no galope, quem chegaria primeiro na risca. Estavam tão entretidos que o pai precisou gritar pelo seu nome, várias vezes, até que lhe ouvisse e atendesse ao pedido, para que se chegasse mais perto, pois o moço queria vê-lo montando.
Sem saber do que se tratava foi chegando devagar, olhando ressabiado para a visita, que o media dos pés à cabeça, enquanto acariciava a cabeça do animal, fazendo-lhe um agrado de amizade.
O rapaz mostrou logo a satisfação no que via. Abriu um sorriso que ia de orelha a orelha, e voltando-se para o anfitrião, confirmou a presença para o domingo.
Sem entender ainda o real motivo de estar ali sob observação de um estranho, Pedrinho – este era seu nome –, sem dar uma palavra, apenas sorria desajeitado, até que o rapaz o dispensou.
Mais que depressa voltou a galope, para continuar a brincadeira. O irmão quis saber sobre o assunto, mas ele também não sabia nada do acordo entre o pai e aquele moço...Vez por outra se pegava espiando lá para a varanda, onde o pai ainda conversava com o forasteiro.
Assim que o sol se despediu, não demorou muito, a visita se foi, e a mãe os chamou para o banho. Enquanto aguardavam o jantar deu para perceber o cochichado dos pais lá na cozinha.
Durante o jantar não se aguentaram e questionaram logo o pai sobre o segredo daquela visita.
Calmamente, o pai explicou que aquele rapaz era um fotógrafo e que estava interessado em fazer umas fotos do sítio, incluindo uma do Pedrinho, montado no “Malagueta”. Viria no dia seguinte, no domingo, logo cedo, fazer o trabalho.
Pedrinho não tinha fé. Quis logo ver com a mãe a roupa que usaria para as fotos. Apressado, foi lavar a sandália, e procurar o boné que havia ganhado do seu padrinho. Pediu logo a dispensa da missa, pois com certeza estaria muito ocupado. A mãe torceu os beiços, mas consentiu, afinal, todo esse trabalho renderia alguns trocados para a família.
O assunto rendeu até a hora de irem para a cama. Mas cadê o sono? O silêncio na casa mostrava que todos já haviam adormecido, só ele que não! Acordado, de olhos arregalados, contou as telhas e viu os raios da lua mudar de lugar conforme o espaço entre as mesmas. Inquieto, chamou o irmão para saber se ainda estava acordado, fez tanto movimento que acabou por afobar o pai, que prometeu cancelar a programação, caso ele não fosse dormir logo.
Assustado, virou-se bem quietinho para o outro lado, e tratou logo de rezar até dormir. Esse era um segredinho seu para as noites insones.
Acordou com os primeiros raios de sol, juntamente com o cantar dos galos. De um pulo só se levantou e foi adiantando as obrigações daquele dia de domingo.
Assim que pôde, foi até o cercado, no curral, verificar se o Malagueta estava bonito para as fotos.
Deu-lhe uma boa escovada com água, colocou mais ração, deu um tempinho e o selou verificando as rédeas, os estribos; enfim, constatando se tudo estava nos conformes. Deixou tudo nas mil maravilhas.
Voltando para dentro de casa correu lavar as mãos para tomar o café, onde todos o aguardavam. Não se continha de tanta felicidade. Não conseguia se aquietar. O jeito foi procurar o que fazer até a hora de se ajeitar para receber a visita do fotógrafo.
Se envolveu tanto nos afazeres matinais que nem percebeu as horas se passar, quando de repente ouviu a buzina da moto lá na porteira. Olhou assustado e viu que era o rapaz.
Não contou conversa...correu até a casa para se aprontar.
O pai foi receber o convidado e já começou mostrando as dependências do sítio.
O fotógrafo não perdia oportunidades. Enquanto ia perguntando sobre tudo era flash para todos os lados.
Finalmente o Pedrinho se pôs pronto! Estava uma belezura! Roupa de ir à missa naquele dia, sandálias limpas, boné na cabeça...tratou logo de montar o seu amigo Malagueta, e foi de encontro ao fotógrafo.
Esperou que ele o reparasse como no dia anterior e lhe dissesse alguma coisa. Porém, sem nada dizer, o profissional foi logo fotografando o menino no cavalo.
Depois de algum tempo, baixou a câmera e disse: Parece que está faltando alguma coisa...
Espantando o pai olhou mais profundamente para o filho e disse: Lógico, tá faltando o seu sorriso filho!


Vanda Maria Jacinto (Auriflama/SP, 1952) Pedagoga, Especialista em Psicologia Educacional. Funcionária pública, aposentada(Estado e município),Membro da ACJUS – Academia de Ciências Jurídicas e Sociais de Mossoró, Membro da ASCRIM – Associação dos Escritores Mossoroenses e Membro do ICOP – Instituto Cultural do Oeste Potiguar. Publicações: Rabiscando os Caminhos da Prosa (Sarau das Letras, 2016). Coletânea  II Seminário Internacional Encontro das Américas (Sem Fronteiras, 2016), Coletânea Literária Internacional Lusófona, vol. 2(Sem Fronteiras,2017) Coletânea  Café e Poesia vol.I e II(Sarau das Letras, 2016/17) Exercícios Literários vol. I e O Amor no Tempo e no Espaço(Sarau das Letras - 2017.




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