terça-feira, 22 de novembro de 2022

 

 

COLETÂNEA AMULMIG

Concurso Literário Prêmio Luiz Carlos Abritta de prosa e poesia – 2022

Edital

https://amulmig-bh.blogspot.com/2022/04/


 cobertura da premiação: BH Eventos

https://www.bheventos.com.br/cobertura/10-04-2022-amulmig-promove-sessao-solene-e-premiacoes-do-seu-concurso-literario-de-prosa-e-poesia

 



O Patrono Luíz Carlos Abritta 

Dados biográficos resumidos





 LUIZ CARLOS ABRITTA nasceu em Cataguarino, distrito de Cataguases-MG, no dia 24 de janeiro de 1935, filho de Oswaldo José Abritta, integrante do Movimento Modernista da Revista "Verde", de Cataguases (mais tarde Juiz de Direito), e de Yolanda Nery Abritta.

ESCOLARIDADE: Curso primário em Carandaí-MG, ginasial e científico no Colégio Santo Agostinho, de Belo Horizonte, Curso de Direito na Faculdade de Direito da UFMG e de Letras (Português/Inglês) no UNI/ BH(interrompido).

ATIVIDADES INICIAIS: Aos 16 anos de idade, contínuo do Banco de Minas Gerais, em Belo Horizonte (R. Espírito Santo com Carijós)  e aos dezenove funcionário do IPASE, em Belo Horizonte.

ATIVIDADES NO MAGISTÉRIO: Lecionou Português e Inglês no Colégio Santo Agostinho, no Colégio "Belo Horizonte"(antigo Curso Chopin), na Escola Técnica "Clemente de Faria" e no Colégio "São Paulo" (todos de Belo Horizonte).- Em Rio Piracicaba-MG foi Professor e Diretor do Colégio Estadual e da Escola Normal, e, em Brumadinho, lecionou "Direito Usual" na Escola de Comércio local.- Nesta Capital, lecionou "Direito Constitucional" na Faculdade de Direito "Milton Campos", substituindo eventualmente o Prof. Ricardo Arnaldo Malheiros Fiúza.

ÁREA JURÍDICA: Advogou em Belo Horizonte de 1958 a 1964, quando ingressou, por concurso público de provas e de títulos, no Ministério Público de Minas Gerais, no ano de 1964, tendo atuado nas Comarcas de Rio Piracicaba, Brumadinho, Itabira e Belo Horizonte (onde foi Promotor da 4ª Vara Criminal, da Vara de Execuções Criminais e do Júri), além de outras, em substituição eventual. Aprovado no concurso para Juiz de Direito de Minas Gerais, não aceitou o cargo. Atingiu, em 1982, o ápice da carreira, quando foi promovido, por merecimento, ao cargo de Procurador de Justiça.- Indicado pela Procuradoria Geral de Justiça, atuou, durante dez anos, no Conselho Penitenciário de Minas Gerais.- Foi Presidente da Associação Mineira do Ministério Público.- Aposentado, a pedido, no cargo de Procurador de Justiça, retornou à advocacia.- Foi nomeado pelo Presidente da República para o cargo de Juiz do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais, na classe de jurista.- Conselheiro da OAB/MG por dois mandatos e Presidente do Tribunal de Ética. Tem artigos publicados na Revista Forense, Revista da Universidade de Uberlândia, Revista de Doutrina e Jurisprudência  do TRE/MG, e Revista JUS, do Ministério Público de Minas Gerais.

ÁREA LITERÁRIA: Foi Presidente, por oito anos, da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais e hoje é Presidente Emérito daquela entidade cultural. Ex-Presidente da União Brasileira de Trovadores em Belo Horizonte, no Estado de Minas Gerais e, por fim, Presidente Nacional daquela entidade cultural. Membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, onde possui artigos publicados em revistas ali editadas, sendo, atualmente, o 1° Vice-Presidente.- Membro honorário da Academia Epistêmica de Letras, de Belo Horizonte e efetivo da Sociedade Brasileira de Poetas Aldravianistas. Foi fundador e Presidente da Academia de Letras do Ministério Público de Minas Gerais. Acadêmico Correspondente da Academia de Letras e Artes de Portugal, Monte Estoril/PT. Já recebeu centenas de premiações na área literária. Julgador de centenas de concursos literários, nacionais e internacionais. Possui doze obras publicadas.

MEDALHAS: Grande Medalha da Inconfidência, Medalha Santos Dumont grau ouro, do Ministério Público de Minas Gerais, da Justiça Federal, do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e da Societé Académique des Arts, Sciences et Lettres, Paris, França, dentre outras.

 

 

Apresentação

Discurso pronunciado pela Presidente da Amulmig Maria Inês de Moraes Marreco na Reunião Festiva de entrega da premiação aos classificados no Concurso Literário Prêmio Luiz Carlos Abritta de

prosa e poesia – 2022, em 04 de outubro de 2022.

 

“Somos brasileiros!

É do Brasil, país de geografia real e mítica, que herdamos o gosto da aventura narrativa, o exercício do imaginário. É nesta terra que escritores surpreendem em cada esquina. Foi esse território que acolheu o jesuíta espanhol José de Anchieta, o primeiro escritor do Brasil. Escrevia ele como se existissem brasileiros que lessem, tentando com seu texto enternecer e evangelizar. E enquanto escrevia  na areia, poemas que as ondas logo apagavam, tentava converter os gentios ao cristianismo, ser aplaudido por Deus, apropriando-se da ilusão como tema de sustentação.

É desse país que emerge o gênio de Machado de Assis, que sem sair do Brasil, elabora sua obra tendo o mar, o Rio de Janeiro e o pessimismo como esperanças. É esse país que gerou os três Andrades: Oswald, Mário e Carlos Drummond, e também, João Guimarães Rosa, Murilo Mendes, Rubem Alves, Alaíde e Henriqueta Lisboa, Cecília Meirelles, Pedro Nava, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon e tantos outros.

Magníficos escritores que se opuseram ao silêncio, às adversidades, que proclamaram as urgências coletivas, em meio a escassez, a dificuldade de realizar seus sonhos.

Mas, para o exercício da sedução, o escritor conta com a palavra, graças a qual ultrapassa a fronteira do real, realça o passado, ilumina os desvãos que asseguram o mistério da arte e a perenidade do seu papel na sociedade.

Devo lhes falar do vulto que alcançou este Concurso, para que acreditem no valor de cada texto que nos enviaram.

O Concurso Luiz Carlos Abritta, promovido pela Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais, acreditamos, contribuiu com sua parcela para que a sociedade não permita que, aos novos talentos seja negada a oportunidade de verem realizados seus sonhos de se tornarem escritores. A arte das palavras suplica-nos que não deixemos que se desfaçam tais utopias.

Nossos jurados premiaram apenas 46, dos 508 concorrentes nas categorias: contos, sonetos e poemas, ressaltando-se, por ordem de classificação, os três primeiros lugares, 3 menções honrosas e 3 menções especiais, classificadas por notas criteriosamente aferidas à cada trabalho.

Dentre esses: 1 de Portugal, da cidade de Beja; 1 do Amazonas, Manaus; 1 da Bahia, de Itaberaba; 3 do Ceará, de Fortaleza; 3 do Distrito Federal, 2 de Brasília e 1 de Planaltina; 1 do Mato Grosso, Cuiabá; de Minas Gerais, foram 8 os ganhadores de medalhas, isto porque, de Belo Horizonte, 2 candidatas receberam premiações duplas: Marilena Guzella Martins Lemos, com 2 Menções Honrosas, (soneto e conto) e Fátima Soares Rodrigues, com 2 Menções Especiais, (poema e conto); 1 de Juiz de Fora e 1 de Ponte Nova; 1 da Paraíba, Campina Grande, para o qual peço-lhes licença para ler o currículo da premiada, abro aspas:

Sofia Costa Leite, tem 8 anos de idade e nasceu em Recife, Pernambuco. Atualmente reside em Campina Grande, Paraíba e estuda na Escola Maple Bear. Gosta de ler paródias e poemas e se encanta com os contos de fadas. Participou do nosso concurso porque gosta de criar e reinventar histórias. Já participou de outros concursos a saber: I Concurso de Poesia da Biblioteca Pública Castro Alves, em Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, (colocada entre os cinco melhores poemas da categoria infantil; II Certamen Leterario de Encina Realas, Córdoba, Espanha, 2o. lugar, categoria poema e Prêmio Espantaxim, 1o. lugar na categoria poema”.

Continuemos: 1 concorrentes de Pernambuco, Arcoverde; 2 do Paraná: 1 de Ponta Grossa e 1 de São José dos Pinhais; 5 do Rio de Janeiro:  1 de Niterói, 3 do Rio de Janeiro e 1 de Valença; 1 do Rio Grande do Norte, Natal; 1 do Rio Grande do Sul, Imbé; 2 de Santa Catarina, Florianópolis e 13 de São Paulo: 1 de Campinas, 1 de Casa Branca, 1 de Franca, 1 de Jacareí, 1 de Mogi Guaçu, 2 de Pindamonhangaba, 1 de São José dos Campos, 4 de São Paulo e 1 de Tatuí.

Vale ainda destacar a participação dos países estrangeiros, perfazendo 20 inscrições: 1 dos EUA, Whashington; 1 da Alemanha, Nurenberg; 1 de Angola, Luanda; 1 da França, Paris; 1 do Japão; 2 de Moçambique, Maputo e Nampula; 13 de Portugal, respectivamente, das cidades Alijó, Ansião, Casal de Cambra, Estoril, Beja, Maia, Massama, Peniche, Ponta Delgada, Ventosa, Vila Nova de Gaia e Porto.

Tornando, assim, o Concurso Internacional.

Além dos Estados Brasileiros: Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraná, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima, Santa Catarina e São Paulo, todos esses com participações de inúmeras cidades.

Entretanto, que fique claro, todos os participantes são merecedores do nosso mais alto apreço e honrarias aqui destinadas. Estamos cientes das dificuldades dos jurados para a classificação dos trabalhos, posto que, os textos literários apresentados se enquadraram na categoria de melhor qualidade, dignificando um concurso acadêmico.

Qual é a importância de um prêmio?

Estabelecer a criatividade e educar, inspirar, aumentar a autoestima, unir uma comunidade em torno do seu trabalho. Comunicar ideias e impactar emoções. Olhar para frente, isto faz toda a diferença.

Convictos de que somente tradição e memória, legados dos nossos predecessores, podem assegurar a continuidade da esperança dos gestos inventivos, almejamos que, atos como os da criação de concursos, encontrem abrigo nos corações dos dirigentes das Academias, construindo os interrogantes do futuro

Portanto, caros amigos, é forçoso acreditar que essa língua lusa, além de permitir a comunicação entre os humanos, tem o privilégio insubstituível de estruturar o pensamento. De ser instrumento preponderante de afirmação da nossa humanidade.

Como escritores, fazemos parte de um contingente de seres que enfrenta os revezes da realidade, somos convocados a encenar o cotidiano segundo desígnios utilitários.

Agradeço o apoio e a dedicação da nossa 2a. Vice-presidente, Angela Togeiro, pela organização, divulgação e cuidado nos mínimos detalhes. Sem ela não seria possível a viabilização de tamanha envergadura. Não só pela dedicação à Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais, como também, pela experiência e conhecimentos de inestimável importância para o sucesso dessa missão.

Agradeço à comissão julgadora, tão bem representada pelos confrades, confreiras e professores convidados:

Elizabeth Fernandes Rennó de Castro Santos

Carlos Reinaldo de Souza

Marzo Sette Torres

Márcio Nogueira Valadares Vasconcelos

Barjute Bacha

Angela Maria Rodrigues Laguradia

Paulo Wangner Miranda

Tânia Mara Costa

Maria Inês de Moraes Marreco

Agradeço às autoridades presentes, aos amigos e convidados aqui presentes, todos responsáveis pelo brilho desta solenidade.

 

Obrigada” 

 

 

 

O conteúdo dos textos aqui publicados é de inteira responsabilidade dos autores, inclusive em caso de plágio; qualquer semelhança com a realidade, em prosa ou em verso, é mera coincidência.



 

 

 

 Parte I - Prosa: Conto

 

 


1º lugar Vencedor

Michael Hubner Passos Ferreira, Belo Horizonte/MG

 

 

O VEREDITO

 

“Repare: são apenas cachorrinhos!”, declarou e estendeu a caixa de papelão fedorenta ao homem de terno com um broche dourado de balança espetado na lapela. “Caramba! Mas esses filhotes...” “Cuidado! Não aponte o dedo pro malhadinho. Ele detesta acusações.” Ajeitando o nó da gravata duas vezes, trejeito contraído e executado diante de situações constrangedoras, um terceiro retoque em razão da feição estapafúrdia daquele encontro, o homem procurou assimilar os fatos: Qual será a razão disso? E bem aqui! Aqui! Por sorte, era cedo; os que cruzavam a calçada ou já subiam a escadaria em direção à entrada protegida com detector de metais, ainda sonolentos, pertenciam também ao quadro de servidores. Do outro lado da av. Pasteur, na lanchonete, que a partir do meio-dia, quando advogados, estagiários, partes, testemunhas surgem a fim de cumprirem seus respectivos papeis, fica entupida de gente aflita, uma solitária garçonete nanica varria o piso. “E então, vai levar? Sei que sua esposa e a Aninha adorariam ganhar um pet; naquela casona em que vivem, ele seria tratado feito rei”, disse o senhor da caixa. Passando a maleta para debaixo do braço direito e consultando o relógio de pulso, o homem, nitidamente perturbado, arriscou, “Você não deveria estar...”, interrompeu-se, pois nada fazia sentido.

“Que cara é essa, Dr. Helder? Parece que vossa excelência viu um fantasma”, o senhor perguntou, depositando a caixona no chão perante os dedos assimétricos, enfiados num chinelo Havaiana azul. A luminosidade suave misturada ao frescor da manhã conferia à ocorrência uma aura de inverossimilhança, algo entre o pesadelo e a chacota. Tentando aplacar a rebelião das palavras em sua cabeça, Dr. Helder o censurou, “Isso é jeito de se mostrar em público? Ainda mais nesses trajes! O que os outros vão pensar, hein?”. Assoando o nariz no colete e suspendendo as calças do pijama, o senhor nem se deu ao trabalho de responder. Limitou-se a coçar a pança branca e molenga. “Eu achava que já tinha visto tudo nesta vida. Agora você vem e me surpreende assim; francamente!” O ataque de Dr. Helder provocou a fragmentação da indiferença. “É incansável essa sua mania de julgar, né?”, zombou o senhor. Um funcionário que caminhava rente à caixa, ao espiar o conteúdo dela, disparou rumo ao imóvel. Quase tropeçou no último degrau. Calculando o volume de autos conclusos para sentença em seu gabinete, fora a quantidade absurda de iniciais que lá despencam diariamente, demonstrando a inclinação humana à litigiosidade, abolem-se as regras e o mundo sucumbirá à genuína desordem, Dr. Helder fez menção de seguir em frente, sem se despedir. Porém, foi bloqueado. “Calminha! Não apela. Temos a mesma missão; e as pessoas precisam de nós!” Erguendo o queixo e contraindo as pálpebras, o coibido divisou o busto de Napoleão Casarim, que adornava a passagem, às costas de seu interlocutor. Sujeita às intempéries, a escultura do ilustre magistrado, baluarte da justiça naquela comarca em data remota, estava coberta por dejetos de pássaros. “Brandão, Brandão! Que aconteceu contigo?”, inquiriu Dr. Helder perscrutando a face enrugada a três palmos de si. A caixa permanecia no chão.

“Localizei uma verdade providencial atolada na crueza dos fatos. Como uma criancinha num curral em dia de chuva, a resgatei toda lambuzada! Falo de pacificação social, caro Dr. Helder.” O juiz franziu a testa. “É simples! De que nos adianta a edição frenética de leis, tão miraculosas no papel, mas, na prática, ineficazes tal qual um santo aposentado, se o defeito está hospedado em nossos corações? Inclusive, o parasita costuma se sentir mais confortável no imo dos próprios encarregados de aplicar as normas...” Brandão cortou sua prédica devido ao assédio de um quarteto de agentes públicos. Notara de soslaio que eles, à porta do fórum, riam e apontavam para ele. Pigarreou em alta intensidade, antes de prosseguir: “Por isso trouxe os cãezinhos; são missionários da paz, pedagogos da solidariedade! Espero que dissipem o mal enraizado nessa cultura da discórdia, da guerra!”. Dr. Helder, a ponto de remover a gravata, encarava o infeliz, cuja oratória despertava nele emoções ambíguas. E o expediente nem havia começado! “Mas, mas...” “Sem embaraço!”, disse Brandão, “Estou ciente, claro, que isso é pouco, sim, bem pouquinho; porém representa um começo, a inauguração dum novo ciclo!”. Agachou-se e fechou as abas da caixa. A desagradável imagem de seu rego ofuscou os pedestres curiosos, que se assomavam entorno da dupla.

Conforme o discurso de Brandão efervescia - o indicador em riste para o céu endossando a seriedade das ideias propagadas - e a turba de ouvintes engrossava, magnetizada pelo espetáculo matinal, Dr. Helder experimentava a vergonha de estar no centro do picadeiro. Basta! Chega disso! Meu tempo não é capim, se decidiu, apertando a alça da maleta e os dentes, no momento em que Brandão argumentava sobre a incompatibilidade da caridade com a autopromoção. “Peraí, colega! Você não pode se esquivar assim, sem ao menos levar consigo um cachorrinho!”, advertiu, hasteando a caixa de supetão e conferindo a Dr. Helder o privilégio da escolha. A náusea reprimida desde a visão precedente de seu interior espocou em forma de uma repugnância arrepiante; quem teve interesse e conseguiu enxergar também pela fresta o que havia nela ficou mudo. “Anda homem! Pegue um; contribua. Tem um montão aí!” Esgotada a paciência, a dó se transformou em irritação por obra da insana teimosia do orador. Dando a mínima à plateia e à proximidade da caixa, Dr. Helder largou a maleta e o agarrou pelo colete. “Acorda, Brandão! Eles estão Mortos! Mortos! Todos eles.” Uma sacudida mais forte, e a caixa comprimida entre os dois caiu, espirrando no passeio os corpinhos sem vida. Os circundantes recuaram por efeito do horror proveniente do estado de decomposição avançado deles. Uma mulher grávida ameaçou desmaiar. Enquanto Dr. Helder recuperava o fôlego gasto na investida, Brandão, ajoelhado, recolhia os pequeninos cadáveres da superfície de cimento, aconchegando-os no colo. “Silêncio! Calem-se! Vocês não veem que eles estão dormindo, os pobrezinhos!”, rogou aos presentes.

Caminhando pelo longo corredor repleto de portas, no segundo andar do fórum, Dr. Helder buscava compreender os motivos, as reais origens, que o fizeram reagir de modo tão impulsivo; comportamento inadequado para alguém que a sociedade espera possuir um senso de equilíbrio superior, indispensável ao mister de solucionar os conflitos de seus integrantes. Episódio lamentável! Sem dúvida, um fiasco! Será culpa do serviço? Verdadeiro trabalho de Sísifo... Deu por si parado diante da porta do gabinete da 19ª Vara Cível. Há mais de 3 meses, ela continuava fechada. Demoravam a designar um novo titular. Suspirou profundamente. Pondo-se em marcha, ingressou na porta seguinte. Sua assessora estava debruçada sobre um grosso livro de atas. “Bom dia, Soraya”, a saudou desprovido de convicção. “Olá, Excelência! Ao chegar, vi você conversando lá fora. É ele? Mudou bastante...” Dr. Helder não se dispôs a responder. Entrou no gabinete; bateu a porta. Na antessala coalhada de autos, a mulher conferiu o relógio da parede, pregado acima do grande crucifixo de madeira. A loucura começaria mesmo, quando os ponteiros atingissem o 12. Coçou a nuca e retomou a leitura.

 

 

Michael Hübner se dedica a colecionar experiências. Agitado & curioso, levanta a pedra, caso necessário, para verificar o que há por baixo. Bacharel em Direito, rabisca narrativas, quando não está distraído demais com os infinitos encantos da vida.

 



 

 

 


2º lugar Vencedor

Perpétua Amorim, Franca/SP

 

 

Conto de falas

O fogo quando alastra pela serra, deixa um rastro de destruição e medo. A menina acostumada com a imagem assustadora, acreditava no grande dragão enfurecido, soprando as chamas na mata ressecada pela falta de chuvas. Informação que a moça do tempo transmitia todas as noites pela velha televisão, com a antena amarrada aos pedaços de arame farpados e imagens chamuscadas. Aparelho eletrônico, que o pai ostentava como o bem mais precioso da casa, desde que a luz elétrica chegara naquele ermo esquecido de todos.

É preciso temer o dragão e ao mesmo tempo dominá-lo, dizia a avó, enquanto limpava o suor com a ponta do pano encardido, amarrado no cabelo. Aquela quentura vinha das entranhas, subia e descia pelo corpo, piorava a noite, era custoso dormir. Precisava ir ao médico. Médico, naquele pé de serra, nem pela hora da morte... melhor seria apelar pelas rezas e chá de erva-de-são-cristovão.

O medo das labaredas destruindo a lavoura fazia parte das histórias, a boa prosa fluía como um ritual em volta do fogo ou sobre ele. Ano após ano as cinzas cobriam o chão vermelho, matando qualquer ser vivo que tentava enfrenta-lo.  As lições de sobrevivência eram armas e escudos cheios de mistérios. A experiência dos ancestrais era passada de geração em geração. O fascínio pelo fogo e a libertação por ele, contribuíam, constantemente, com as lendas criadas e repetidas na região.

A magia trazida pelo dragão, não poupava os bichos e passarinhos, os quais morriam na tentativa de salvar os seus filhotes das chamas ardentes. A menina conhecia todos os segredos e pecados que alimentavam a fúria do dragão, muitos desses segredos a terra ocultava, abrindo-se em feridas latentes, arenosas que desmoronavam com qualquer chuva mais forte ou vento descontrolado.

E os pecados? Sim, havia os pecados! Muitos deles cometidos por ela. A mãe fazia questão de lembra-la, todos os dias – “Isso vai te levar para o inferno”, ou “o fogo do inferno te espera”. O fogo do inferno deveria ser implacável com ela. Esse ela temia. Temia tanto, que na escuridão do seu quarto repetia dezenas de vezes a única parte da oração que sabia de cor “Ó Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno....”

As orações e os pecados repetidos, causavam-lhe incêndios interiores, a alma queimava em chamas, até serem apagadas pelo sono profundo. Houve tempos, que mesmo durante o sono as chamas permaneciam. Em pesadelos noturnos, os gritos da menina, despertavam a noite e avançando pela madrugada adentro, acordando todos da casa. “ tá doida, dizia a mãe!” acendendo a luz. De uns dias pra cá, parou de gritar durante o sono. Desde que a prima Marlene foi embora, a menina acalmou. Marlene não era um bom exemplo. Na semana passada, a menina encontrou Marlene e Valdomiro pelados lá no riacho, falou em voz alta na cozinha e acabou levando bronca, a mãe disse que o Valdomiro estava apagando o fogo de Marlene. Vai ver que é por isso que os dois estavam dentro d´água! Naquele dia não tinha nem fogo, esquisito, pensava a menina. Mesmo assim a menina foi procurar explicação com a avó e o resultado foi a volta de Marlene para a casa dos pais. Pensando bem, Marlene tinha fogo no rabo, o certo era ficar junto dos seus. Até o pai tinha concordado. Já com Valdomiro, ninguém falou nada. Precisava dele por aqui, era um bom apagador de fogo.

A conversa dos adultos girava em volta da secura do tempo. A água do açude estava barrenta, o pasto virou palha seca e os animais não tinham o que comer. Qualquer fiozinho de fogo, viraria um fogaréu! Virgem Santa! Repetia a mãe. O pai profetizava olhando para o horizonte, o mundo vai acabar em fogo.

O fogo... Sempre ele!

As chamas estalavam a lenha seca, trazendo uma claridade fosca na escuridão da cozinha. No fogão, a panela de mandioca fervia, os pedaços esbranquiçados, seria a refeição antes de dormir. “Será que ainda tem melado?”  foi o pensamento que veio junto com o prato esmaltado. Mandioca e melado era luxo, agradava-lhe e por alguns instantes afugentava o medo da noite, que do alto do morro espiava a menina. “Não tem melado!” gritou a mãe. “ Ocês come tudo, nada chega... agora o engenho do João Bentinho tá parado, pegou fogo no canavial, acho até que chegou nas caldeiras...”

O pai acabara de virar a terceira talagada de cachaça, que descia feito lavas derretidas pela garganta. Eu não condeno os hábitos poucos ortodoxos do pai, é preciso muita cachaça para desanuviar os olhos e retirar as cinzas que ainda queimam nos aceiros da vida e nas palavras não ditas.  As palavras acumuladas criam faíscas, provocam atritos indesejados e comprometem o passar do tempo, as vezes lento demais, outros acelerados, feito o fogo. Em comum só o calendário da parede, alternado os dias, semanas e meses.

Da janela o ar seco nublava o olhar da menina sobre a serra coberta de cinzas, tão igual aos anos passados, tão sóbrio como a falta de horizontes. Alheia a falta de tudo, a menina deixava solto o sorriso, ao perceber uma família de quati, tentando esconder-se entre os troncos queimados, um bando de maritacas voando rasante pelo quintal, barulhentas e felizes, traduzindo novos tempos. De vez em quando a menina tirava os olhos da janela para ouvir e a lamúria da mãe em volta do fogão, ora atiçando o fogo, ora mexendo a panela de feijão.

“ Anda, sai dessa janela, vai na casa de sua tia e vê se tem chuchu.... queira Deus que o fogo não tenha queimado tudo.... “A casa da tia ficava do outro lado do morro, em caminhada lenta dava uns 20 minutos. Naquele deserto de cinzas, não tinha com que a menina distrair na caminhada, era só abaixar a cabeça e andar ligeiro.

Andar ligeiro era quase instinto de sobrevivência naquele cenário apocalítico. Estranho foi quando Valdomiro apareceu na sua frente, saindo sabe lá de onde, com um sorriso que ela desconhecia. O sorriso foi aproximando cada vez mais, a menina apertava e passo e sentia como se estivesse paralisada e prestes a ser devorada pelo seu predador. “ hoje ocê não escapa, cabritinha...”  pronunciou Valdomiro, entre os dentes, sem desmanchar o sorriso e certo do sucesso da investida.

Foi um tiro só. Valdomiro caiu no amontoado de cinzas, feito um abacate maduro. O sangue vermelhinho grudou nas folhas queimadas e espalhou numa trilha serra abaixo. A menina trêmula de medo sequer respondeu ao comentário do pai, “ninguém vai bulir cá  fia minha ..” e continuou :  “ faz muito tempo que tô de olho nesse fio da p* . concluiu chutando as raízes de uma moita de capim revirada pelo fogo. “Vai fia, vai fazer o que sua mãe mandou... vai pegar o chuchu.”

A menina obedeceu mais uma vez, limpou os olhos, deixando um rasto de carvão misturado com lágrimas no rubro natural do rosto adolescente. No silêncio tentava encontrar uma moita qualquer de onde o pai poderia ter saído, para salvá-la do ataque de Valdomiro. O vazio da resposta cobriu-lhe a mente, só o descampado e alguns cupinzeiros fumegado na imensidão da serra.

No jantar nenhuma novidade, só o silêncio pairando sobre o prato esmaltado com feijão e chuchu, uma lágrima salgada, servindo de tempero .

Alguns dias depois, mais uma lenda surgiu naquelas bandas. Em falas sigilosas, conta-se que Valdomiro fora ajudar apagar um incêndio na divisa dos estados de Minas e São Paulo, numa região produtora de cana-de-açúcar, depois da serra, lá pelos lados de Franca, e foi nessa empreitada que ele sumiu dentro de uma nuvem de poeira e fumaça que engoliu a zona rural e a cidade inteira. O acontecido cobriu tudo que tinha pela frente, a nuvem de terra tinha mais de léguas de altura e a largura era de perder a conta, ia de uma cidade a outra, E foi nessa nuvem que Valdomiro desapareceu.

Não duvido que esse vento tenha transportado os restos mortais do homem para perto da casa da menina. Bem ali, ao lado da cerca de arame farpado, recém construída. Imagino que uma escavação mais profunda e sem milagres, a ossada aparecerá entre o milharal que começa a despontar suas espigas de cabeleiras vermelhas.

 

 

Perpétua Amorim, mineira de Capitólio, residente em Franca SP. Escritora e poeta, associada da Academia Sul-mineira de Letras – AFESMIL e da Academia Francana de Letras -AFL. instagran-@perpetuamorim




 


 

3º lugar Vencedor

João Lisboa Cotta, Ponte Nova/MG

 

 

O PRÊMIO DIVINO

Nossos sentidos, com frequência, nos traem, pois, muitas vezes, passamos diante de algo extraordinário pensando tratar-se do nada.

 

 

Era o final de uma abafada tarde de verão; o sol estava avermelhado como o do inverno, pois nuvens cinzas e pesadas dominavam o céu, deixando no horizonte uma estreita faixa livre, na qual os raios do ocaso eram, gradualmente, tingidos de uma cor rubra ao vencerem o obstáculo. Um certo desânimo abateu-se sobre o jovem engenheiro Júlio, que inspecionava as obras de restauração da principal igreja da cidade barroca. Os trabalhos estavam atrasados, o que o preocupava, já que, no contrato, ele teria que concluir o projeto um pouco antes da data na qual a cidade completaria trezentos anos. Júlio averiguava a grossa e deteriorada parede do flanco direito, que dava para o cemitério, quando observou algo brilhar de modo intenso, refletindo a luz solar que decaia próximo a uma gasta coluna de pedra-sabão. Com uma lanterna e um estilete de metal, uma vez que a noite de chuva impunha-se, verificou que parte de um cilindro comprido pendia, numa leve inclinação, para fora da parede, como se estivesse cansado daquela longa prisão. Ao tocá-lo, o objeto moveu-se e exteriorizou-se ainda mais, aguçando a curiosidade do engenheiro, que, por fim, tenta retirá-lo do velho abrigo. Certifica-se que era pesado, mas a pressa, que nos deixa incautos, acaba por despencar o cilindro no chão. Ao cair, sua enferrujada e carcomida tampa rompe-se. Uma profusão de moedas douradas cintila diante à tênue luz do sol que expirava no poente. Diante da surpresa, um ímpeto de apoderar-se do alheio, que nunca sentira, o invadiu. Catou às pressas as moedas; as coloca novamente no cilindro; esconde o inaudito objeto em um matagal atrás de um jazigo abandonado; logo depois, uma borrasca desaba. Quando a chuva terminou e a madrugada já era realidade, Júlio, com o coração na boca, as mãos gélidas e as pupilas de um animal em caça, retorna ao cemitério e recolhe o cilindro. Já tinha em mente que o levaria ao seu sítio; lá o esconde em um local inencontrável.

Apesar do desejo de conhecer aquele acervo, que o consumira durante a semana, conteve como pôde esse anseio, uma vez que tinha de dar cabo à restauração do patrimônio. Entretanto, com a chegada do fim de semana, recolhe-se em seu sítio para, com tranquilidade, inteirar-se e aquilatar-se do achado. Assim, em um cerrado bananal, Júlio desenterra o antigo objeto; submete-o a uma meticulosa limpeza e deposita-o sobre uma grande mesa de imbuia. Com a serenidade adquirida pela prudente espera, abre o cilindro e começa a avaliar o conteúdo. Apesar de só e confortavelmente sentado, não teve como conter o coração, que, de novo, acelerou com vigor, pois pôde ver que, de fato, eram moedas de ouro muito antigas, como supusera. As recolheu e as pesou; somavam quase nove quilos. Percebeu que, na esmagadora maioria, havia a esfinge de D. Pedro II, de dois e quatro mil réis, cunhadas em 1849 e 1853. Contudo, verificou que existia umas moedas muito grandes, que nesse então, não soube precisar o que representavam. Colocou novamente as moedas no cilindro, e, agora, escondeu seu tesouro num canto quase inencontrável do telhado, em um pequeno vão entre as telhas e o forro.

Na segunda-feira, cedo, dirige-se à biblioteca pública à cata de um livro de numismática, visto que nesse tempo não havia internet. Debruça sobre ele e, sem muito esforço, descobre que a moeda grande tratava-se do famoso Dobrão, antiga moeda portuguesa, de vinte mil réis, cunhada em Vila Rica – uma preciosidade. E nesse impasse, sem saber o que, realmente, fazer, alguns meses se passaram. Por fim, toma a decisão que iria surrupiá-las e derretê-las, exceto os Dobrões, que eram minoria e muito valiosos. Portanto, aos poucos, derreteu e cunhou o ouro em pequenos lingotes; como realizou o processo à surdina, esse trabalho consumiu algumas semanas. Findada a operação, escamoteara a rapina de maneira hábil; estava livre para vendê-lo, o que fez nos anos que se seguiram, em conta-gotas.

Júlio migrou de uma modesta empresa de reformas para uma construtora, que debutou realizando edifícios populares. Vivo e empreendedor como era, com o tempo, já edificava apartamentos de maior valor, uma vez que a parte nova de sua cidade colonial crescia, alavancada pela extração de minério de ferro. Casara; já tinha uma filha, e, no torrão natal, a reputação aumentava, dia a dia, como exemplo de dinâmico empresário. Nessa época, movido por sonhos que julgara reveladores, deixou de ser um quase ateu para um fervoroso católico, pois intuíra que Deus o agraciara; depositou em suas mãos um tesouro afanado por alguém, provavelmente ligado à paróquia, que, por alguma fatalidade, não logrou usufruir o fruto do malfeito. Passa a ir à missa com frequência.

Ao longo dos anos, sem sobressaltos, seus negócios só prosperam; transforma-se no senhor da construção civil de toda região. Conhece o mundo. Empreendimentos de luxo são vistos com seu nome na capital. Nesse momento, deixa de ser o sinônimo de homem sagaz e diligente, convertendo-se em um filantropo e humanista, baluarte da moral, um mecenas das boas ações: constrói e banca um abrigo para idosos. É empossado, pessoalmente pelo bispo, como ministro da Eucaristia. Nas celebrações dominicais das quais participava, a frequência era maior; todos queriam vê-lo. Passa a fazer palestras nas escolas como um exemplo a ser seguido; políticos, autoridades e até religiosos o procuram para o aconselhamento. Sua vida e de sua família continuava sem embaraços.

Como a vida flui rápido! Quanto mais compromissos criamos, mais célere escoa o rio que move nossa existência e conduz nossa preciosa vitalidade; perdem espaço os momentos que poderiam ter sido desfrutados com pequenas coisas que, também, nos são caras, e  insufla-nos o espírito. Desse modo, quando o doutor Júlio se deu conta, seus cabelos estavam encanecidos, a face sulcada e o viço exaurido. Tão logo se apercebeu disso, sopesou sua vida; conclui que, realmente, foi exemplar, no entanto deixou a desejar a atenção dada aos filhos, à família, aos amigos e a tantas coisas que sempre sonhou realizar e não fez, já que seus dias eram um périplo de atividades, além de ter contraído uma dúvida moral em seu espírito com relação ao que arrebatara no passado. Torna-se um pouco esquivo, acabrunhado, mas prosseguiu sua trajetória, pois depois de anos comportando-se de um determinado modo, cria-se certos vezos que são incorrigíveis, conquanto, na medida do possível, se esforçara para compensar as supostas faltas. Seu sorriso, uma de suas características, fica menos cristalino; turvara. Havia nele algo de inquietante; um movimento mínimo e bizarro do lábio inferior que denunciava esse desassossego interior, essa ausência de paz que muitos adquirem ao envelhecer, a despeito das conquistas, da biografia cobiçada, entretanto maculada nos labirintos da própria consciência de quem a realizou.

De mais a mais, mesmo que tentemos deslembrar ou brecá-lo, o mistério no qual estamos irremediavelmente inseridos nos arrasta, mais cedo ou mais tarde, para a temida senilidade. De modo que, mesmo com todo o aparato de cuidados, façanhas, troféus que conseguiu angariar, em uma bela manhã de primavera, Júlio vê-se, quase sem acreditar, em um quarto de sua mansão próximo do adeus, em decorrência de um câncer devastador; chama sua filha e solicita-lhe o último desejo: um padre para se confessar. No entanto, faz uma exigência, teria de ser o da igreja que, na juventude, foi o responsável pela restauração. Sem demora a filha busca o religioso, um homem de meia idade que ainda usava batina, de nome Neltom, que se prontifica de imediato. Ao chegar a mansão do engenheiro, é encaminhado, sem rodeios, ao pé da cama do enfermo; doutor Júlio exige que queria ficar a sós com ele. Assim feito, a porta cerrada, o engenheiro confessa, com a voz arrastada da velhice, o roubo, que o atormentava nos últimos anos. Aliviado por ter confidenciado o episódio que o martirizava, pede ao padre que abra a gaveta do criado-mudo e retire uma caixeta de madeira; a chave estava em um pequeno saco de pano no fundo da gaveta inferior do móvel. O padre, cuidadosamente, abre o objeto; dobrões brilham ao refletirem a luz solar que entrava pela ampla janela, diante dos seus olhos. Doutor Júlio comenta que esse fato deveria ser um segredo inviolável; quanto às moedas, deveriam ser atribuídas a algo encontrado, de modo fortuito, dentro das muitas cômodas centenárias existentes na igreja, e, por fim, roga para que fossem usadas na conservação do templo. O padre, atento ao que via e ouvia, acena de maneira afirmativa com a cabeça; pouco depois, o doutor Júlio expira.

O sacerdote, com um movimento rápido da face, olha para a porta e, logo em seguida, inspeciona, em instantes, todos os cantos do aposento; coloca, com avidez, a caixeta na bolsa que portava. Corre para avisar aos familiares o falecimento.

Na missa de corpo presente, padre Nelton enaltece, sem poupar as qualidades, o memorável finado. Termina a cerimônia assim: menos um honesto neste mundo; uma pessoa incensurável!

 

 

João Lisboa Cotta Nasceu em Ponte Nova, MG, em 07-08-59; casado, pai de duas filhas. Cursou ensino fundamental no Colégio Salesiano Dom Helvécio em sua cidade e o ensino médio no Colégio Arquidiocesano em Ouro Preto. Estudou medicina na Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórdia de Vitória, ES. Especializou-se em Cardiologia no Hospital Felício Rocho em BH. Lançou dois livros na livraria Ouvidor em BH: Reflexões num campo de lavanda em 2008 e Sinceras Ficções em 2011. Pela editora Quixote, lançou em 2020 o livro de contos As escadas de Angélica. Premiado em vários prêmios literários, como na Academia Fluminense de Letras; Academia Feminina de Letras (AFEMIL) de MG; Academia de Letras de Cachoeiro do Itapemirim; Academia de Letras de Ituiutaba, da cidade de Lins, de Angra dos Reis, de Ponte Nova; na Academia de Municipalista de Letras  de MG em 2017, dentre muitas outras premiações.

 




1ª Menção Honrosa

Lucio Rodrigues Junior, Tatuí/SP

 

 

O PRIMEIRO

 

Moreno. Alto. Corpo de atleta. Olhos azuis. Estampa de revista ou de tevê? Não. Esse era meu irmão caçula, Fernando. Nando para todos de casa. Nandinho para as garotas da vizinhança que à sua volta, pareciam um enxame de abelhas sedentas de mel! Eu era o primeiro filho, baixinho. Careca. Magrelo. Não havia academia que desse jeito! Espirituoso e inteligente, mas solitário. Era Nandinho para cá e para lá. Cansava de atender os telefonemas de mulheres à sua procura. Lista interminável. O mano não se prendia a nenhuma. E eu continuava saindo apenas com amigos. Clube do Bolinha. Futebol, bolsa de valores, músicas de sucesso, o salário baixo eram nossos assuntos. Além das queixas em relação às mulheres. No grupo de cinco, os dois casados queixavam-se da rotina, do desmazelo das mulheres – Agora não se perfumam mais... Nem passam aqueles cremes no corpo... Só cheiro de temperos e reclamações! E acrescentavam – Só sabem cuidar dos filhos e da casa! Reclamam quando saímos para o futebol de sábado ou para tomar uma cerveja com os amigos... Umas chatas!  E voltando para os três solteiros – Felizardos! A liberdade não tem preço! Isso me confortava enquanto a conversa rolava entre copos de cervejinha gelada entremeados de fritas e tira-gostos. Em casa, ao retornar pela madrugada, a cama de Nando ainda vazia. Quando eu saía para a redação do jornal, o mano ainda dormia. Meu pai enquanto vivo, cansou de falar – Rapaz, leia a sessão de empregos! Vá atrás do seu futuro! Você já está com 20 anos. Não terminou os estudos. Não trabalha... A mãe e a tia solteirona retrucavam em coro – Nosso menino é um atleta! Vai ser campeão! – e afagando os cabelos crespos do marmanjo punham por terra qualquer orientação de meu pai. Nando era um campeão, é verdade. Campeão de conquistas de mulheres, de fanfarronices e bebedeiras. Sua única ocupação era malhar na academia, à tarde, depois das quatros horas. Até duas dormia. Almoçava entre os paparicos da mãe agora viúva e da tia. A mim, o nanico da casa, cabia trazer o sustento e não reclamar. Qualquer tentativa, apelavam em dupla – Você tem inveja, Gabriel! Você deveria ter orgulho do nosso futuro campeão! – e toca alisar os fios de cabelos do preferido, que não se fazia de rogado. Eu me acomodara àquela situação e desistira de argumentar como fizera logo após o enterro de meu pai – Futuro campeão? Campeão de quê? Só se for de bebedeira e de traçar as donzelas do bairro... A mãe levantara-se num ímpeto. A bofetada inesperada que desferiu em meu rosto deixou-me estupefato. Apertei as mãos com força para não retribuir seu gesto e ainda tive que engolir as palavras da tia – Ainda é pouco! Irmãos são pedaços da mesma carne!... Subi ao quarto saltando os degraus da escada de dois em dois, envergonhado com a indiferença do mano diante do acontecido. Na cama, martelava-me na cabeça, a resposta que não fora dada – Realmente era estranho que pedaços da mesma carne fossem tão diferentes... Mas não sei qual é a banda podre!

E a situação instalou-se principalmente quando mamãe começou com problemas cardíacos. Qualquer tentativa de fazê-la enxergar a realidade provocava seu choro convulsivo e o ataque da irmã – Rita, Rita... como pode?! E abraçando-a - Você gerou um santo e um demônio! O demônio era eu. O anjo nem aí para a situação. Roupas de grife. Boêmio. E endeusado. Passei a retardar ao máximo o retorno a casa. Cheguei a procurar um apartamento de quarto e sala, mas quando toquei no assunto – O primeiro filho, quem diria, abandonando a mãe viúva e doente! É preciso ter coragem!... Essas palavras da tia. A mãe aos prantos. O caçula com um sorriso cínico. Mortificado deixei-me ficar. Cancelei o contrato de dois anos e ainda paguei a multa. Passei a ignorar a situação. Fazer o quê? Até que uma jovem senhora recém casada mudou-se com o marido para o sobrado em frente à nossa casa. Nando não saía da varanda. Espichava os olhos. Nem disfarçava na presença do marido, quando a mulher acompanhava-o até o portão. Tentei adverti-lo, mas da cozinha surgiram mãe e tia – Deixe Nando em paz! Você gosta de atormentá-lo!  Ainda tentei – Vocês são cegas?! Não percebem... As duas cortaram-me as palavras; a mãe – Gabriel, você vai se atrasar para a redação! E a tia ainda arrematou – Só falta perder o serviço por causa de bobagem... – e afagou os cabelos crespos do anjinho de mais de trinta anos! Saí batendo a porta com força. Foi minha última tentativa. Mas o tempo é inexorável e imprevisível. Fazia a cobertura da inauguração de uma nova rede de supermercados, quando fui chamado ao telefone – Fernando agonizava!... No hospital, as explicações do policial – Crime passional. O marido desfechara vários tiros no corpo do atleta, que assediava sua esposa no reduto sagrado do lar. No velório, as duas irmãs. Mesmo sangue, mesmas palavras – Nosso atleta! Nosso campeão!... Tão jovem e formoso!... E voltando-se para o nanico solitário - Você poderia ter evitado a tragédia! Por que não chegou mais cedo, Gabriel?!

Bem, refiz o contrato. Mudei-me antes da missa do sétimo dia. Contratei uma senhora para cuidar da casa, da mãe e da tia. Decidi que chegou à hora do primeiro cuidar da própria vida!

 

 

Lucio Rodrigues Junior. Participações em Festivais Literários como o Fepoc (Festival de Poemas de Cerquilho), da Rocha Moutonnée de Salto, Concurso Literário de Barueri , Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas gerais, Portugal, Espanha, Mapas culturais de edições anteriores e muitos outros lugares por esse mundo, contemplado em alguns e prestigiado com menções honrosas, dedica-se a literatura desde os 15 anos e além de escritor e poeta, também é ator, por onde se demonstra seu apreço pela cultura no geral.

 

 



 


1ª Menção Honrosa

Marilene Guzella Martins Lemos, Belo Horizonte/MG

 

 

Estava Escrito

 

A canção já disse: “Que sera, sera. For ever will be, will be.

Os árabes e Malba Tahan exclamariam: “Maktub”.

Eu digo: quando tem de acontecer...  Casamento e mortalha no céu se talha.

Falo de uma história de amor bem açucarada, como aqueles  filmes musicais da MGM, com direito a encontros, desencontros, algumas lágrimas, e termina quando o par de namorados se beija entre juras de amor eterno.

Esta história é real, bem real. Eu conheci os dois protagonistas, já idosos, andando de mãozinhas dadas pelo Bairro da Savassi.

Tudo começou no fim da década de trinta do século passado quando Maria Tereza estava esplendor de seus 1920 anos. Ela morava com os pais na Avenida Cristovão Colombo, numa casa de 5 janelas, estas um pouco altas, mas dando direto para o passeio. Do lado, um alpendre e mais uns 4 metros de jardim. Era filha caçula de pais já idosos. Os 4 irmãos, todos homens, já haviam se casado. Formara-se para professora e lecionava no Grupo Escolar Barão do Rio Branco. O pai, juiz aposentado, a deixara trabalhar fora porque tratava-se de ambiente sadio, isto é, lá só havia mulheres e crianças. E pertinho de casa, onde podia controlar o tempo da ida e volta.

Os pais criaram a filha com amor e conforto, mas eram excessivamente severos. Maria Tereza não saia sozinha, não tinha amigas, apenas conhecidas, as professoras da escola. Eles agiam bem à moda antiga. Quanto a um possível casamento para a caçulinha, imaginavam que talvez um senhor de família conhecida viesse pedir a mão da moça para um filho seu. Aí o pretendente poderia visita-la com a presença de todos na sala e marcariam a data do casamento etc., tudo bem medieval. O juiz dizia horrores quando via um casal de namorados, sozinhos, passando de mãos dadas. Maria Tereza, obediente, aceitava a situação sem se rebelar, bastava-lhe ficar à janela vendo os passantes e os bondes em suas rotineiras idas e vindas.

Entre os desfilantes diante sua janela, havia um rapaz que se dirigia ao abrigo de bondes, bem no meio da Praça Diogo de Vasconcelos, hoje conhecida como Praça da Savassi. Sabia-lhe o nome, Luiz Gonzaga, e também que era bancário, pois, irmão de uma professora da escola, já vira a colega referir-se a ele. Estabeleceu-se um flerte, aquela troca de olhares, evoluído para um meio sorriso. Isto é sorriso apenas esboçado. O rapaz devia ser muito tímido porque jamais tentara dirigir-lhe a palavra. Por timidez ou por temer o velho juiz de quem deveria conhecer a fama.

Os meses foram correndo, os olhares mais intensos e sonhos povoando pensamentos e sentimentos de Maria Tereza.

Num belo dia, algo inesperado. O moço aproximou-se da janela e lhe entregou um pequeno buquê de rosas. Nem teve tempo de agradecer. O rapaz seguiu caminho. O buquê era de rosas artificiais feitas com tecido acetinado por mãos muito habilidosas.

Ainda surpresa, ouviu a voz do pai chamando-a. Correu até um guarda-roupa, abriu a porta espelhada e lá jogou o buquê. Com receio da mãe descobrir, colocou-o numa caixa e deixou-a bem escondida.

Nos dias seguintes, o olhar do rapaz pareceu-lhe interrogativo.

Depois, o moço sumiu!

Seguiram-se dias de espera inútil. Maria Tereza fez mil conjecturas e só conseguiu juntar decepção com tristeza, saudade e uma urgência de explicação. Às vezes abria o guarda-roupa e no escuro de seu interior, abria a caixa e apalpava o buquê para se certificar que não estivera sonhando.

Seguiu-se o inevitável tempo esmaecendo as lembranças e uma dorzinha no peito machucando de vez em quando.

Dois anos após, finalmente, uma notícia. Na hora do lanche das professoras, Maria Tereza ouviu a irmã do rapaz dizer a outra colega: amanhã, vou a São Paulo. Da capital sigo para uma cidade do interior onde mora meu irmão. Vou assistir ao casamento dele.

Então foi isso, ele mudou-se para longe e agora vai se casar. Foi a pá de cal colocada no assunto. Maria Tereza lembrou-se do buquê. Estava na hora de dar-lhe um fim, jogá-lo no lixo. Desatou o laço de fita para soltar os cabos das flores. Viu cair ao chão um papel bem dobradinho, até então escondido em meio às folhagens que rodeavam as rosas. Era um bilhete.

“Senhorita Maria Tereza

Meus cumprimentos.

O banco em que trabalho me ofereceu a gerência de uma filial a ser criada numa cidade no interior do Estado de São Paulo e devo me mudar para lá dentro de 15 dias. Como tenho muita afeição pela senhorita, gostaria de pedir a sua mão ao Dr. Juiz, tendo em vista um casamento em breve, Aguardo uma resposta. Entenderei o seu silêncio como uma não correspondência aos meus sentimentos.

Luiz Gonzaga Duarte

Fácil imaginar o que sentiu: estupefação, tristeza, agonia. Uma dor sentida no fundo do coração. Não pode conter as lágrimas que correram soltas.  Por sorte os pais não estavam em casa. Disse à empregada estar com uma dor de cabeça terrível. Iria tomar um remédio e se deitar. Que os pais não a acordassem. Sentiu-se melhor no dia seguinte, mas um vazio iria permaneceu bastante tempo. Em dois anos morreu o pai, mais um ano morreu a mãe. Não se sentia sozinha, fazia-lhe companhia a empregada antiga e um batalhão de sobrinhos, filhos dos quatro irmãos que moravam no mesmo bairro e estavam sempre passando pela sua casa. As meninas requisitavam a Tia Terezinha para levá-las ao Cine Pathé, na mesma avenida.

O episódio do buquê tornou-se uma lembrança de vinte anos.

Um dia a sobrinha Cristina perguntou-lhe de supetão: - Tia, não entendo. Por que você não se casou? É tão bonita, inteligente, culta e elegante...nenhum pretendente? Não acredito. Maria Tereza riu, levou-a até o quarto e mostrou-lhe o buquê e o bilhete, acrescentando: -não foi por causa dele que recusei os pretendentes. Este caso já estava esquecido. Não me casei porque nenhum me entusiasmou a ponto de abrir mão de minha liberdade. Depois que seus avós morreram, fiz faculdade e vários cursos. Atualmente dou minhas aulas pela manhã e à tarde, tenho boas amizades no meio estudantil e viajo quando quero.

Menos de um mês depois Cristina contou o caso do buquê para sua melhor amiga, a Mônica. Ela arregalou os olhos e exclamou: Luiz Gonzaga é primo do meu pai. Eles são muito ligados, quase como irmãos. Quando vem a Belo Horizonte hospeda-se conosco, eu o considero como um tio. Você não o conhece porque há anos mora no interior de São Paulo. Vai voltar a morar aqui. Ele acabou de se aposentar e há dois anos ficou viúvo. Vi-ú-vo e sem fi-lhos! Essa última frase foi dita bem alto e sílaba por sílaba.

Claro que as duas cabecinhas tiveram a mesma ideia, criar uma oportunidade de aproximar os dois.

As garotas, com a cumplicidade dos pais de Mônica, planejaram tudo tão bem que Maria Tereza nem desconfiou quando Mônica a fez prometer ir a sua festinha de aniversário.

Maria Tereza lá chegou e foi cumprimentando os presentes, alguns velhos conhecidos e deparou-se com um senhor que lhe pareceu familiar: mais encorpado, os cabelos com muitos fios brancos, de óculos. Mônica, com a cara mais zombeteira do mundo exclamou: Dona Terezinha, quero lhe apresentar o meu tio Luiz Gonzaga. Ele é viúvo e está de mudança para Belo Horizonte. Claro que a esta altura Luiz Gonzaga já estava a par do mal-entendido e manifestara o desejo de encontrá-la.

Duas décadas os transformaram. Ele nada tinha do rapaz tímido e formal. Era um executivo vivido e seguro de si. Ela, professora universitária, nem lembrava a solitária mocinha da janela. No entanto, permanecera a luz inexplicável que os ligara anteriormente. Foram para a varanda da casa e passaram o tempo falando de suas vidas. Quatro meses depois subiram ao altar, consumando uma união que deveria ter acontecido há vinte anos. Duas damas precederam a noiva. Adivinhem quem? Isso mesmo, Cristina e Mônica, as duas cúpidas.

 

 

Marilene Guzella Martins Lemos é contadora de histórias, escritora e palestrante. Pertence à Academia Mineira de Leonismo, Academia Feminina Mineira de Letras, Arcádia de Minas Gerais, Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais e ao Instituto Histórico e  Geográfico de Minas Gerais. Autora de doze livros, inclusive de Contos de Fadas para público infanto juvenil, tem seu nome participando de várias antologias.

 




 

 

2ª Menção Honrosa

Gilda Portella Rocha, Gilda Portella,

 

 

TIO LATO

 

No interior do Brasil, vindo das terras distantes e alagadas do pantanal, surge Virgilato Canuto da Silva, a quem todos respeitosamente conhecem por Tio Lato. Um mestre na arte de domar animais, sanfoneiro e benzedor afamado. Filho do tempo, do vento e devoto fervoroso de Santo Antônio.

Em Poconé-MT, chegou com sete anos de idade e começou a trabalhar na fazenda o Sr. Bastião, no Pixaim. Foi o maior peão que a região já conheceu, amansava bois, cavalos, mulas e burros bravos só olhando nos olhos deles. A técnica consistia em aproximar do animal lentamente e hipnotizá-lo, estabelecendo um elo de confiança. No clarear do dia, estabelecia uma conversa mansa e longa e arrodeando o bicho, ia observando os movimentos e comportamento dele e não demorava muito ele já o permitia tocá-lo e na sequência colocasse o cabresto e mais tarde o arreasse.

Estava apto para a montaria.

Fantasticamente e com maestria a doma estava concluída, não havia animal arredio ou chucro que não ficasse apto a montaria num curto espaço de tempo. Exímio conhecedor das diferentes linguagens das animálias naturais do Pantanal. O seu domínio sobre os animais era de forma mansa, dócil e serena. O dom” do encantamento era herança de seus ancestrais.

Afamado chefe de comitiva, pois conduzia boiadas inteiras de uma fazenda a outra, durante as cheias dos rios, sem perder nenhuma rês. No tempo das secas retornava com os animais para as partes mais baixas do pantanal. Preferia os burros e mulas por serem mais resistentes, tanto no período das vazantes como nas enchentes. Realizava “bagualhação” que consistia na tarefa de recolher boi “baguá” ou “marruá” desgarrados e criados nos cafundós.

Tio Lato era um negro, de meia estatura e magro. Dotado de extrema sensibilidade e poderes extraordinários, tinha uma aliança com o tempo, vento, raios e trovões. Desse segredo só sabemos parte do mistério, falava a línguas dos bichos, amansava os bois baguás. Além de exímio cavaleiro, era conhecedor dos sinais do meio ambiente pantaneiro e da natureza dos animais. Manipulava fluidos eólicos e aquáticos afastando as piranhas, para que a boiada pudesse atravessar os rios sem ser atacada. Conduzir boiada exige muita paciência, prática e sabedoria. Mas, possuía talento, destreza e competência para enfrentar tempos adversos, precariedade das estradas boiadeiras, pontes de madeiras, travessias dos grandes rios, animais selvagens, alguma doença e humor da boiada. Domava todos os elementos que pudessem interferir no ritmo lento e perene que durava muitas marchas (dias).

Tio Lato usava chapéu, camisas de mangas longas, inclusive as perneiras de couro, mais o revólver 38 e a peixeira não saiam da cintura. O laço quase não era usado, mas fazia questão de tê-lo para compor a indumentária de um bom peão e chefe de comitiva. O berrante era extensão da sua boca e os sons emitidos eram fantásticos.

Enquanto deslocavam uma boiada de baguás, Piché, o peão mais novato da sua comitiva, de modo desastrosos e inadvertidamente derrubou uma árvore seca, perto da baía, quando os demais peões viram, ele estava sendo atacado e picado por dezenas de abelhas no rosto, pescoço, nuca e cabeça. Instantaneamente, zumbido do enxame provocou o estouro de parte da boiada, que assustada e ensandecida correu por todos os lados. Tio Lato tira o chapéu da cabeça e começa a fazer uma coreografia ao vento, seus lábios pronunciam palavras inaudíveis ao ouvido humano. Quando finalmente emite sons guturais, coloca o chapéu no chão, todas as abelhas tinham se retirado e os bois foram acalmando e retornam a marcha normal.

Tio Lato poetizava, rimava, elaborava verdadeiros improvisos metrificados. Versejava usando a sua sanfona, conversava com os elementos da natureza:  terra, água, ar e fogo. Para ele, cantar era uma forma de oração, trovava com facilidade, pondo sentido na vivência. A vida tinha que ser devagar como o ritmo natural das águas que derramam sobre o pantanal. Para ele, somente dessa maneira haveria aprendizado e saber. Sua linguagem e seus cantos eras capazes de transformar ser e coisas.       

O som da sua sanfona e os causos contados a beira das fogueiras à noite, uniam e alegravam os companheiros para enfrentar os trabalhos em equipe, aumentavam a confiança entre eles, pois um dependia do outro para sair vivo da empreitada e amenizavam as aventuras perigosas: as cobras boca de sapo e ataques de outros bichos ferozes, inclusive das onças. 

Antes do sol romper já estão encilhando os animais de montaria, verificam todos os apetrechos, par de esporas, guaiaca, laços, peias, manoplas, alforjes, guampas e redes. Nas bruacas (espécie de baú feito madeira e coberto de couro) do cozinheiro são levados os utensílios domésticos e os mantimentos: sal, açúcar, arroz, feijão, carne seca, farinha, café e guaraná. A comida era feita no fogão de chão na chamada trempe. Ervas medicinais para o caso alguém ou algum animal fosse picado por cobras, ou adoecesse ou se machucasse. Antes de levantar acampamento e sair para o campo os boiadeiros tomam apenas um café ou guaraná em pó.

A rotina é dura. Arriscam a vida em cima do lombo de um burro, mula ou cavalo. O trabalho é de sol a sol, vivem meses longe da família, sofrem, há riscos, apuros, perigos e luta por todos os lados e todos os dias. Uma dessas aventuras, foi quando o peão Tiziu topou com um colossal marruá. Aparentava estar muito furioso e brutalmente partiu com tudo para cima do boiadeiro. O animal estava olhando por cima, de cabeça alta, soprava violentamente pelas ventas, a distância era pouca, só deu tempo de Tiziu sacar o revólver e mirar, deu 6 tiros na cabeça do terrível bicho.

Parecia que nada tinha atingido a fera. Incrivelmente, a criatura investiu, derrubou-o do cavalo, com o impacto da chifrada rasgou o pescoço do burro que saiu do cenário do ataque. O Marruá tentou esmagar o peito do peão, caindo de joelhos no chão, Tiziu rolou de lado de forma instintiva e conseguiu safar-se do esmagamento. O bicho tornou-se a virar, tentando enfiar seus chifres nas costelas de Tiziu que rolou pelo chão. Mal deu tempo de recompor da queda, ainda tentava sair do alcance das vistas do boi bravo. Ainda havia riscos de coices, pisoteios e chifradas.

Um companheiro aproximou-se toureando tentando atrair o animal para si, como não consegui apeou e tentava piá-lo pelos pés traseiros. Parece que tudo isso aumentava o enfurecimento do boi, muito agressivo continuava empenhado em atingir o peão Tiziu, que se esforçava em levantar e pelejava para sair do campo de visão da fera. No desespero, o peão laçou o marruá e puxou-o com o cavalo. Em pé, o bicho virou de forma repentina e partiu para cima do outro cavaleiro, com os chifres furou a barriga do outro cavalo, jogando o peão no meio das matas dos piúvas já com a perna quebrada.

Agora o marruá está pronto para continuar o ataque a Tiziu. No mesmo instante chega Tio Lato começa a cantar o seu aboio: “Boi êêê, Boi aaá”, “Boi êêê, Boi aaá” e o marruá vai se acalmando e sai tranquilamente, com a cabeça baixa e se junta a boiada. Na hora do apuro, não são gritos nem laços que resolvem, é jeito.  Sentindo-se protegido por forças divinas, o Tiziu tira o chapéu, aperta-o contra o peito, olha pro céu e faz o sinal da cruz.

Tio Lato, provavelmente era descendente de escravos, nasceu no final do século XIX, na região de Mimoso. Foi criado desde menino na região do Pantanal poconeano e enterrado próximo a fazenda Santa Terezinha, no Pixaim, em 07/09/1944.  Ainda hoje os ribeirinhos e pantaneiros narram suas célebres façanhas, reverenciam sua memória e homenageiam a identidade particular de matreiro. Devotadamente, rezam a Tio Lato pedindo amparo e segurança na lida com o gado, quando vão deslocar com o rebanho pelo vasto território pantaneiro, clamam livramento das pestes e  suplicam proteção contra picada de cobras e ataque de animais selvagens.

 

 

Gilda Portella – sacerdotisa da Umbanda, multiartista, pós-graduada em História UFMT. Nascida em 1969 Barra do Garças-MT, há trinta e cinco anos vive em Cuiabá-MT. Em 2022 recebeu menção honrosa na categoria novos autores do Prêmio Maria Firmina de Literatura; foi selecionada pelo Flup/RJ com Cartas para Esperança. Em 2021 foi selecionada I Prêmio Rodivaldo Ribeiro de Literatura. Participa várias das antologias.

https://www.instagram.com/gildaportellaart/

 

 


3ª Menção Honrosa

Gisela Lopes Peçanha, Niterói/RJ

 

 

A COR DA LIBERDADE NÃO É CINZA

 

Caminho de chinelos. Roupa qualquer. Maquiagem zero. Ligo a televisão: dor, estatísticas, mortes, médicos e enfermeiros que choram ou aplaudem um paciente que se  recuperou. Dor e emoção. Olhos marejados. Vou à pequena varanda, molho plantas, penso em cantar para alegrar a vizinhança, mas lembro que não tenho vontade nem voz. Tudo o que consigo é fazer um café e dar comida e carinho para minha gata Salomé que, de nada sabe, do alto dos seus 16 anos. Sua vida é acordar, espreguiçar, espichar, comer, esconder a caca, e dormir mais. Não sabe que o mundo está sofrendo, não sabe que estamos presas em casa pois, afinal, ela sempre esteve presa mesmo: assim como Benedict, meu coleirinho, que só canta para mim. Meus companheiros de vida.

Pego uma xícara de café. Falo pelo zap com minha mãe, e tenho a sensação de que acabou o dia. Ela chora, tem saudade. Olho para a televisão, mas tenho medo de ligar. Pego um livro, mas sem paciência de ler. Quero sair de carro, mas não tenho para onde ir. Ligo para um amigo, ele reclama. Ligo para uma amiga, ela reclama e chora. O vizinho de cima ensaia cantar uma canção Napolitana, mais desafinado que apito molhado. Mas, valeu a boa intenção. Estamos todos trancados. Ele tentou alegrar a tristeza. 

Não tenho bicicleta ergométrica, mas tenho uma bike enferrujada, na qual não passeio há anos. Assolada pelo tédio com pitadas grossas de depressão ameaçando mostrar a sua cara, insisto na ideia. Coloco tênis de corrida –velho por conta de meu ócio – óculos, capacete, luvas, máscara. Junto à garrafa d’água, um frasco de álcool em gel. E  lá vou eu. Completamente só. Sirvo Benedicit com seu alpiste importado, afago Salomé com um pote de leite fresquinho, e me mando. A vida workaholic de falta de tempo e o sedentarismo me presentearam com um joelho detonado e uma leve pança: um pouco parecido ao que aconteceu com a gata. E eu, era gata também. Benetict permaneceu  magro, porque acho que alpiste não tem caloria alguma.

Ao sair pelo corredor, encontro a vizinha com uma máscara azul, extraordinariamente espessa e profissional. Penso logo que queria uma igual. Mas, ela mal me viu e saiu correndo, com medo de eu contaminá-la. Na verdade, a antipatia antecedia a pandemia. Ela, uma dondoca esnobe; eu, uma trabalhadora full time. Mas, por um milagre, ela sorriu para mim. E eu, retribuí. Cumplicidade na dor, amém.

Peguei a bike na garagem. Ela rangeu, como quem não vê óleo há décadas; mas, estranhamente, os pneus estavam até cheios, dava para andar. Então, pus–me a meu destino sem destino.

Pedalei pelo quarteirão. Cidade tipo ‘’Ensaio sobre a cegueira’’, ou ‘’Blade  Runner’’. Ficção científica. Poucas pessoas passando, de máscara ou até capuz. Olhei os  prédios do lugar onde moro há dez anos, e não os reconheci. Alguns tinham cores lindas, estilos art decó, art nouveau, que nunca reparei. Tudo diferente. Avistei o mar, decidi  parar a bike e sentar sozinha em um banco de cimento. Olhei para o céu e vi um azul  turquesa, tom de aquarela... a areia, branquinha como neve, sem uma latinha ou plástico sequer. A água, transparente, como se fora o mar do Caribe ou de Fernando de Noronha. Levei um susto! Se me dissessem que eu estava no paraíso, acreditava.

Mas, maior susto levei, ao ver duas tartarugas (mãe e filhote) nadando alegremente sob a água translúcida, acompanhadas de peixes gorduchos. Olhei em volta a me certificar se eu não havia morrido, e renascido no jardim do Éden. Respirei fundo e o ar estava mais fresco, puro. Eu ficaria ali por horas. Tudo parecia um novo planeta, completamente desconhecido de meu cotidiano. Não parecia meu bairro, não parecia meu mundo, não  parecia meu mar.

Montei na bike e rodei mais quarteirões, sendo seguida por pássaros. As calçadas pareciam chão de um centro cirúrgico: nem um único papel de bala sequer. Pedalei, pedalei, por horas! Olhei cada arquitetura que nunca havia notado, cada canteiro que eu nem sabia existir! Cada árvore que eu nunca havia percebido, mesmo ficando diante delas

no engarrafamento de todos os dias – rumo ao trabalho. O vento tocava meu rosto. Minhas pernas não queriam voltar. E eu chorava, pela dor do mundo. Mas me sentia grata, por ainda ter vida.

Chegando em casa, tirei o tênis na entrada, coloquei a roupa de molho, lavei as mãos e sentei na varandinha. Salomé veio se esfregando pedindo afeto, e notei o quanto ela estava uma bola. Benedict cantou, como sempre faz quando eu chego. E eu pensei o quanto o mundo pode ser lindo, e o tanto que o ser humano o destrói, dia após dia. Há beleza em toda parte! Camuflada por sujeira, por desrespeito, por superpopulação, por desigualdades, por falta de planejamento urbano! Por asfixia! A vida pode ser outra. Há muita vida por trás da vida. 

Peguei Salomé no colo e prometi a ela que, quando o mundo vencesse o vírus e tudo voltasse ao normal, compraria uma coleira e a levaria para passear todos os dias – a subir em árvores e se esbaldar nos canteiros. Imaginei, até, trocar meu apartamento por uma casa com quintal. Em seguida, abri a gaiola de Benedict e, com o coração dilacerado,

o deixei partir... para que ele pudesse ter uma única chance de voar. E de ser livre. 

Dias depois, acordei com Salomé espreguiçando nos meus pés, e um canto mais lindo que existe, melodiava em minha janela. Meu coleirinho havia voltado para me visitar. Ele agora era um pássaro sem prisão, com um canto muito mais forte e valente. Também  descobriu que ser livre, é o bem maior que há.

O tempo passou, a pandemia curou, vida nova raiou, e eu troquei meu apartamento por uma casa com quintal. A dor me trouxe novos valores. E, lembrando do filme ‘’A Liberdade é azul’’... é mesmo.

Salomé, mesmo anciã, aprendeu a subir em árvores, tal qual uma atleta. Benedict se cansou do céu: achou grande demais para quem cresceu em gaiola, preferindo fazer morada no abacateiro da casa nova, perto dos que amava. E ele não voltou sozinho: trouxe sua companheira, uma papagaia que encontrou pelo caminho. Ela cantava o dia inteiro, melodiava até o hino nacional!

Eu a batizei com o nome Liberdade. 

(Este conto é dedicado às centenas de milhares de brasileiros que perderam a luta contra  a Covid.)

 

 

Gisela Peçanha: Venceu o Prêmio Rubem Alves 2015 da Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, SP. Premiada em concursos literários de universidades federais brasileiras, a saber: Universidade Metodista de Piracicaba, Universidade do Pampa, Universidade de Brasília, UNIFEBE, UNICAMP. Conquistou mais de 140 prêmios literários, no Brasil e em Portugal. Publicou em 70 antologias físicas e e-books. Membro efetivo da Academia Internacional da União Cultural, ocupando a cadeira de número 36 RJ – Patrona Hilda Hilst.

 



 

 


1ª Menção Especial

Raïssa Lettiére Torres de Castro, Campinas/SP

 

 

TELA ESTRELADA

 

Por falta de opção em um dia chuvoso, resolvi visitar a Solitudine, uma pequena galeria na margem do lago. Tenho aversão a artistas e nunca me interessei por pintura, aliás não gosto de arte alguma. Mas a curiosidade me fez vaguear dentro da galeria. Uma meia-luz em uma das salas dava um ar mais agradável àquele ambiente cansativo, cheio de eruditos enfadonhos. Sentei-me em uma poltrona desconfortável na frente de uma parede cinza, com um quadro grande, pendurado por cordinhas vacilantes. A placa ao lado do quadro informava que a tela era de um artista desconhecido, que pintou uma Árvore da Vida em data ignorada, em algum ponto misterioso do deserto do Bahrein. No centro da tela, a árvore rodava enlouquecida, esbarrando em estrelas que caíam sobre as areias do deserto. A sala, o quadro, o discurso intelectual aumentavam a sonolência e mastigavam meu pensamento, antes de o engolir... até o momento em que fui surpreendida com o rompimento das cordinhas que prendiam o quadro à parede. Na queda, a moldura se espatifou, lançando a tela para o alto, despregando árvore, estrelas, areia, que desabaram sobre mim antes mesmo que eu fizesse qualquer movimento de defesa.

Vi então o cosmos se abrir rodopiando estrelas à minha volta, orvalhando-as sobre mim. Pincéis frenéticos, lançados em minha direção, começaram a me contornar, minha forma sendo definida a cada traço, enquanto uma paleta sobre minha cabeça, despejava cores infinitas que preenchiam meu contorno, dando-me vida, trazendo-me à luz. Eu estava sendo parida! As raízes da Árvore da Vida se alongavam ao meu redor, me envolvendo e embalando ao som do universo. A vida se agigantava enquanto eu tocava os astros com a ponta dos dedos. Os braços das estrelas me seguravam, e eu podia engatinhar sobre a Via Láctea e construir ao longo do caminho castelos com a poeira cósmica. Tudo era possível. Inclusive ser amada e não estar mais só. Inclusive ser ninfa e casar-me com Apolo. Inclusive sentir-me completa sob o olhar do artista que me concebera. Mas, sob as nebulosas, há buracos negros e um terreno escorregadio ao seu redor sobre o qual o artista caminha descuidado, até ser sugado por aquela profundidade assustadora. E a revelação da qual eu fizera parte se encolheu na obra. O universo retomou sua posição e as estrelas foram novamente penduradas no céu. A Árvore da Vida escorregou de volta à sua estatura. As raízes foram engolidas pela areia do deserto. O que era próximo se distanciou, cravando a eternidade dentro da moldura, dentro da galeria, dentro de mim.

Na saída, peguei meu guarda-chuva, casaco e bolsa. Lá fora um fim de tarde frio e nublado. Protegi-me com o casaco e deixei o guarda-chuva a postos. Sempre há um acúmulo de chuva fina nos momentos e lugares mais impróprios, inclusive essa abundância de gotas insistentes, acumuladas sob minhas pálpebras neste entardecer, à porta da Solitudine.

 

***

 

Prezado Pintor Desconhecido,

A curiosidade me arrastou à galeria Solitudine, onde vi sua Tela Estrelada. Li que havia sido pintada em data ignorada, em um ponto misterioso do deserto do Bahrein, pelo senhor, que é desconhecido. Queria que soubesse que julgo sua obra perigosa. Seu céu estrelado desabou sobre mim e, desde então, tenho vadiado à noite pelos campos do meu vilarejo, tentando encontrar suas estrelas por aqui. Outro dia resolvi me aventurar até uma praia chamada Pienezza. Vi pela primeira vez o mar e fui caminhar na areia, que me remeteu à lembrança do deserto por onde você doidejou distante por tantos anos. Na praia encontrei uma estrela-do-mar com uma das pontas quebrada. Já tinha lido sobre a existência dessas estrelas, mas nunca tinha visto uma tão próxima e não imaginava que poderiam ser tão minúsculas. Resolvi encaminhar-lhe minha estrela de ponta partida com esta carta na esperança de que ambas possam chegar a você, em algum lugar do seu deserto, vislumbrando as estrelas em sua galáxia imaginária. Minha intenção é solicitar-lhe que inclua minha estrela machucada em sua obra.

 

***

 

Prezada visitante,

Jamais recebi sua carta, mas vou respondê-la. Sua experiência na galeria só confirma aquilo que há tempos tenho como certo: a arte é uma inimiga sedutora. Essa feiticeira me arrastou ao deserto, aprisionando-me lá por muitos anos, onde eu pintava isolado de todos, inclusive da minha mulher. Fiquei embriagado pela vastidão daquela paisagem a ser emoldurada. Aos poucos o vazio passou a escapar para dentro de mim. À noite, em minha solidão, vagava pelo deserto, tentando alcançar as estrelas, mergulhando no cosmos, em busca da revelação de algum mistério que pudesse ser registrado em minha obra, emoldurado e exposto em alguma galeria famosa. Dizer que eu queria que minha obra-prima compensasse minha ausência, que minha mulher se orgulhasse de mim, significaria esvaziar a importância da revelação. O que eu almejava era ser o primeiro a trazer ao mundo o mistério e os segredos do deserto, a beleza das estrelas, a grandeza do universo. A imortalidade era a minha maior ambição. No deserto não há rumores, certezas ou incertezas. Não há desencontros. Meus únicos encontros eram com a amplidão despovoada e com um andarilho que às vezes surgia de suas andanças e recitava poemas sobre um refúgio paradisíaco. Fiz também minhas próprias andanças em busca desse paraíso, mas jamais o encontrei. Uma noite o andarilho surgiu, misterioso. Durante dias caminhara desde o passado até aquelas paragens. Disse-me que havia encontrado a Árvore da Vida, no meio do deserto do Bahrein. Aconselhou-me a não procurá-la, porque, desde o momento em que a vira, passou a sentir o tempo correndo em suas veias – e ele morria a cada amanhecer. Deixei-o dando os últimos suspiros e parti com minha tela, pincéis e cores na direção em que seu dedo apontava. Ansiava por encontrar algo nessa vastidão; uma resposta ao mistério da existência de uma Árvore da Vida no deserto. Eu me agarraria a essa árvore e a transportaria para minha tela. Meus anos errantes seriam justificados. Minha existência seria esclarecida. Minha obra seria imortal.

Fiquei velho. Meus dedos endureceram, minha vista escureceu e meu coração começou a bater em um compasso diferente daquele das estrelas. Tornei-me um artista cansado e enfermo que caminhava descuidado pelo deserto, até ser derrotado pelo acaso. Hoje encontro-me entubado, em estado vegetativo. Não tive oportunidade de ver minha obra exposta. A Árvore da Vida do deserto do Bahrein plantada em uma galeria. O deserto ficou apenas instalado em minha alma. Às vezes recebo a visita de uma senhora rancorosa. Imagino que tenha ido à galeria e não tenha compreendido por que seu marido passou anos nômades no deserto para trazer ao mundo apenas uma árvore rodopiando na tela, com galhos roçando estrelas que caem como orvalho sobre as areias secas do deserto. Meu único desejo é que algum tipo de assombro tome conta do seu espírito, que ela possa comungar comigo dessa eternidade emoldurada, exposta em uma galeria.

Seu Pintor Desconhecido

 

 

 

Raïssa Lettiére nasceu em Piraju, São Paulo. Formada em Letras e Literatura pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, atua como editora de livros. Inventou a história de começar a inventar histórias e assim surgiu De folhas que resistem, seu primeiro livro.

 




 

 


2ª Menção Especial

Maximiliano da Rosa, Imbé/RS

 

 

Manhã de Sol

 

Vem cá, guri. Anda logo, seu imprestável, mexe esse corpo, até parece que tá morrendo, tenho um serviço pra ti, olha só a altura que o sol já vai, a manhã está praticamente no fim e tu ainda tá aí se coçando. Tá pensando o quê? Não vou te dar moleza. Ah, tá doente? Doente que nada, não tenho nada a ver com isso, deve ser só uma gripe, olha aí os outros reparando em ti, não quer que te chamem de fresco, quer? Claro que não. Então anda de uma vez, vem aqui. Isso, guri esperto. Olha só, está vendo aqueles sacos ali na entrada, perto do portão? Claro que tá, todo mundo tá vendo. Vai lá, pega um por um aqueles sacos que os caras da loja largaram no meio do caminho por pura preguiça, coloca dentro do carrinho de mão e traga cá pra dentro, no depósito, antes que invente de chover; imagina se isso acontece e estraga todo aquele cimento: o patrão come o meu fígado tenha certeza disso. Quê? Não quero nem saber se teu corpo tá dolorido, já falei, daqui a pouco vão começar a falar que tu é fresco, teu pai vai ficar sabendo e vai ser pior, não quero nem ver o que vai ser de ti se ele te pega, tu bem sabe: teu pai é um homem severo, ele é bem capaz de mandar te dar uma surra se passar vergonha por tua causa. E tem mais: o problema não são só os outros, prometi pra ele que ia te botar no serviço, somos velhos amigos, teu pai e eu, garanti que bastava uma semana na obra para tu virar homem e deixar de ser essa criatura cheia de frescuras que tu é hoje. Tu vai ver, isso aqui é uma escola, o trabalho é uma dureza só. E isso é bom, muito bom. Verdade que tem uns aí que não aguentam, que arrepiam o casco depois de dois ou três dias, e não voltam nem pra buscar o ordenado. Isso é normal, tá mesmo cheio de frouxo por aí. Mas tu não. Tu eu não vou deixar ir embora, vai ficar aqui na marra porque é uma dívida que tenho com teu pai, tu vai trabalhar de dia e de noite vai dormir no alojamento, nem pensar em arredar o pé. É assim que vai ser. Vamos ver se não engrossamos essas mãozinhas delicadas, se em dois toques tu não tá falando grosso. Agora chega de conversa e vai trabalhar. Vou ficar aqui só supervisionando. Isso, levanta o saco, vamos, força, tu consegue, coloca no carrinho. Viu? Não é tão difícil. Agora segura com força, ergue e empurra até ali no depósito, são apenas alguns metros, tu consegue. Pronto. Um já foi, só faltam dezenove. Só não pense que tem o dia inteiro, nosso tempo é curto, temos prazos a cumprir, isso aqui não é uma repartição pública, é uma obra particular, o dono tem pressa, quer ver a casa dele pronta o quanto antes. Quer o quê? Água? Nem começou a trabalhar ainda e já quer parar, olha só o cara. Não, esquece isso, vai continuar carregando os sacos, só vai tomar água depois de levar tudo pra dentro. A vida não é fácil, tem de aprender cedo a lidar com as dificuldades, cada provação é um aprendizado que se leva para o resto da vida. Quantos anos tu tem, guri? Dezesseis? Dezessete, é mesmo? Ano que vem tu vai te alistar, que maravilha. Se pegar quartel, aí sim, tu vai ver o que é bom pra tosse. Por isso eu te digo: aproveita pra aprender agora a ser macho, porque lá dentro eles não perdoam tipos feito tu, assim, delicados, cheios de não me toque. Esses são os que mais sofrem. Não é pra qualquer um. Precisa ver as barbaridades que aprontam. Tem muito marmanjo que não suporta. Bom, mas isso é outra história. Vamos lá, continua. Estou de olho. Levanta o saco, coloca no carrinho. Ei, olha só que tu está fazendo, tá rasgando tudo, ah seu desgraçado, tu fez de propósito. Que fraqueza, que nada, tu é um baita fresco mesmo, se fosse meu filho ia ver, ia apanhar que nem bicho. Agora trata de juntar o que derramou no chão. Pega aquela pá ali, junta tudo, coloca dentro do saco, não quero ver nem uma sobra. Pronto. Agora vai terminar o teu serviço. Viu? Tá quase acabando, só faltam cinco. Quatro, três, dois, um. Vai lá, te dou cinco minutos pra tomar água e descansar. Depois volta que tenho uma barbada pra ti. E vê se caminha direito, e para de rebolar. Já descansou que chega, guri, agora levanta daí e vem comigo. E eu com isso que já é quase meio-dia? Tô nem aí. Tu só vai almoçar depois que carregar estes tijolos aqui lá para o outro lado onde estão erguendo aquela parede. Entendido? Pode começar. Tá bom, te dou mais cinco minutos pra descansar. Nem um segundo a mais. Só pra não dizer que sou um carrasco. Que não tenho coração. Vou almoçar, mas não pense que não estou de olho em ti. Quanto antes terminar o serviço melhor pra ti. E aí, guri? Terminou? Carregou os tijolos todos direitinho? Não falei que tu aprendia? Ótimo. E me diz: te arrancou um pedaço, o trabalho? É claro que não. Agora senta aí e come com a gente. Sabe, guri, vou te contar uma estória: eu já tive a tua idade, também já fui assim, não sabia nada da vida, só não era tão fresco, mas também tive de aprender algumas coisas. Tá vendo, olha os meus bíceps, o meu peitoral. Parece coisa de malhação, academia. Mas que nada, minha família era pobre, passei a maior parte da minha adolescência quebrando pedra. Literalmente. Criei força batendo uma marreta de ferro maciço muito maior que o meu braço. Dia e noite, quase sem descanso. Tu não imagina as dores que eu sentia. E foi lá que conheci teu pai, na pedreira. É, guri, teu pai também quebrou muita pedra. Quem o vê agora, endinheirado, com carro importado, casa na praia, de terno e gravata, não diz como foi dura a sua vida. Foram tempos difíceis. Mas, ao contrário de mim, ele não ficou parado, estudou, e a duras penas formou-se advogado. Se hoje é um homem bem situado, respeitado, com ótima situação financeira é porque lutou, trabalhou duro, enfrentou as dificuldades de braços abertos. E venceu. Não pense que ele quer te ver sofrer. Ele só quer que tu entenda que a vida é dura. Que as dificuldades ensinam, que ganhar tudo de mão beijada não é bom. O que vem fácil vai fácil. Só isso. Ei, guri, está ouvindo o que estou dizendo? Não me venha com mais frescuras. Estou ficando cansado disso. Não vá me dizer que está passando mal, não acredito. Conheço bem os truques que usam para escapar do serviço. Pensa que nasci ontem? Nasci, não. Sou vacinado contra a malandragem alheia. Já vi muita coisa nesta vida. Não é qualquer um que me enrola. Está ouvindo, guri? Guri? Espera aí, deixa eu ver uma coisa: tu está ardendo em febre, guri. Mas por que tu não me disse que estava com febre? Por favor, não vá desmaiar agora, guri. Ei, alguém aí chama uma ambulância. Para com isso, guri, não brinca com coisa séria, teu pai me mata se te acontece alguma coisa. Tu não fez isso só pra me ferrar, fez? Alguém aí sabe fazer respiração boca a boca, parece que ele parou de respirar. Alguém me ajude, mão fiquem aí parados só me olhando seus palermas, façam alguma coisa. A culpa não foi minha, guri. Teu pai é que quis assim, ele que mandou ser duro contigo. Ei, guri, não vá morrer agora. A gente estava indo bem, não é justo, guri. Guri?

 

 

Maximiliano da Rosa é escritor, poeta e desenvolvedor de aplicativos. Natural de Novo Hamburgo, RS, mora atualmente em Imbé, no litoral norte gaúcho. É casado e tem duas filhas. Autor dos livros de contos “O Land Rover Negro e a Caixa de Drops” (2020) e “Ofertas Imperdíveis” (2022). Este último foi finalista do Prêmio Uirapuru 2021.

 

 




 

 


2ª Menção Especial

Marcos Almir Almeida de Souza, Manaus/AM

 

 

Dos pecados estudantis

 

Os olhos do professor de história, vidrados em uma antologia poética da qual ele próprio era um dos autores, pareciam adormecidos, mas o que me amedrontava era o pestanejar ritmado e as repentinas observações, como se recebesse os alertas encenados em mediunidade, através de encaradas fixas aos estudantes, suscitando ansiedade e desconfiança nos observados.

Toda vez acontecia isso; quer dizer, sempre nos dias de prova. Até mesmo os que nunca colavam temiam que, com a vigilância do mestre, brotasse em suas mãos, como num passe de mágica, uma cola criminosa.

Em nossa turma, sob hipótese alguma, ouvia-se o indício de fraudes nas avaliações do professor Neidson. Em outras disciplinas, sim, no entanto, nas dele havia um acordo tácito entre nós estudantes... Turma milagrosamente unida. Uns amigos de outras turmas diziam que, se ele flagrasse, o estudante receberia advertências, era marcada reunião com os pais, o menor infrator tornar-se-ia a vergonha da sala e a turma sofreria ao longo de todo ano letivo o mau-humor do professor, além de aulas massivas, verdadeira palestra de fatos históricos despejados em nossa estreita cabecinha.

Um corajoso do 8° C teve a inteligentíssima ideia de anotar as datas e as palavras-chave na palma da mão, logo na primeira prova de história, mês de março, começo do ano. Começo do ano, bicho! E o pior: ainda antes de iniciar a prova, quando foi responder à chamada, ergueu a mão involuntariamente e expôs à vista de todos a tintura azul grafada. O professor, míope, como todos sabiam, usava óculos que, se bem posicionados, poderiam aferir as camadas de sebo num rosto estudantil... O professor levantou-se calmamente, Leleu do oitavo ainda tentou apagar, afoito, a cola na parte detrás do cabelo ao perceber o vacilo. O professor solicitou ao meliante que estendesse as mãos sobre a carteira. Em meio a borrões e traços foi-se possível ler: “F. Ferdinando... Junho de 1914... Gavrilo”.

Todos os estudantes da escola pagaram pelo erro individual e ousadia de Leleu, assim como o assassínio sérvio — em proporções diferentes, claro.

A partir do ocorrido, o professor Neidson fez-se rancoroso, perdendo o brilho cada vez que adentrava a sala de aula. Acredito que ele via o ato de colar como um desrespeito ao seu trabalho. No fundo, faz sentido; ao menos eu reconheço a dedicação de contar a mesma história repetidas vezes... Eu, só de contar essa, pela primeira vez, já me sinto bastante cansado e com vontade de largar a caneta e o papel e ir fazer coisas novas.

Prossigo, mas não sem um comentário pertinente: nós, estudantes, também sofremos em estudar para disciplinas tão diversas e com assuntos de elevada complexidade. Enfim, cada qual com os seus argumentos.

Espero que a classe de professores seja mais amigável e bondosa que a dos estudantes, pois, eu, concentrado em resolver as questões sobre a Revolução Francesa do professor Neidson, só escutei o estalo suave na folha da prova, sem entender quem havia arremessado na minha carteira aquele papel dobrado inúmeras vezes.

Olhei para os lados e ninguém parecia notar a situação agoniante; quem sabe não fosse uma sabotagem coletiva...

De onde vinha o papel misterioso, e, aliás, qual era o conteúdo dentro dele? Se é que tivesse de fato algo, podendo ser um papel em branco jogado por um disfarçado traidor, ou uma brincadeira infeliz de um amigo postiço.

O professor continuava de cabeça baixa

Tinha um livro entre as pernas ou seria um celular?

Não tinha como saber; as novas mesas de professores são fechadas na frente para evitar vocês-sabem-o-quê.

Cochilava? Era difícil saber.

O ar-condicionado da sala era capenga, embora eu sentisse um frio mortífero. A aflição me anulava o pensar. Era o papel, era dali que vinha o frio paralisante. Qualquer movimento brusco reluziria nas lentes do professor. O olhar rápido me obrigaria explicações que eu próprio não sabia.

Travei, perdendo a vista entre o professor, o papel misterioso, a prova e os prováveis suspeitos.

Estava encurralado.

Se eu segurasse o papel, ele seria meu, se deixasse ali, também seria, dado que a carteira e a prova eram de minha propriedade.

Tanto se eu deixasse na carteira, guardasse no bolso ou empurrasse para debaixo da prova — sem saída — seria meu.

Se caísse no chão, cairia da minha carteira, portanto, eu responderia pelo amaldiçoado papel.

E o professor permanecia naquela posição, tranquilo como de costume, aumentando dessa maneira o meu medo, uma vez que quando silencioso, nem o mais tímido sorriso passava despercebido.

Concluí atormentado: o papel pertencia tanto a mim quanto a unha do dedo mindinho pertence ao meu corpo inteiro. Corpo que tremia em imaginação ao eventual flagra desmoralizante.

O medo se misturava com a injustiça do caso e esta injustiça me dava uma incontrolável raiva do anônimo diabólico que arquitetou aniquilar a minha já parca reputação.

Na melhor das circunstâncias, fosse mesmo como eu imaginava: uma pegadinha infeliz. Um simples papel em branco. Porém, o ato imprudente poderia esconder um objetivo real, mais maldoso; quem sabe acobertar a cola de outros enquanto distraíssem o professor.

Os pensamentos e suposições me atingiam como golpes frios.

E se o professor pensasse, ao abrir o papel em branco, que a cena de enredasse numa zombaria ao seu comportamento? Nessa situação, as punições poderiam ser...

No turbilhão da criação ansiosa de cenários utópicos, ouço o barulho denso e seco no piso da sala.

Ele não lia nem fazia outra coisa senão adentrar os portões do céu.

Os instintos da maioria foi o de gritar, gritaram horrorizados; outros, a minoria, meia-dúzia, foram socorrê-lo.

Eu fiquei como estava.

O professor ficou de bruços: infarto do miocárdio, como viemos saber depois.

Faz parte da vida, todos morrem; eu morrerei, tu morrerás, nós morreremos; minha única dúvida é se ao morrer entrarei pelas portas do céu, como o professor, ou pelos fundos do inferno, visto que quando o professor caiu desfalecido só conseguia pensar aliviado: aquele papel não mais seria meu.

 

 

Marcos Souza nasceu em Manaus/AM no ano de 1998. Aventura-se por gêneros literários diversos, embora seja nos contos e nas histórias ágeis que encontra o seu lugar na literatura. É formado em Geografia pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM. Participou em várias antologias, tanto na prosa quanto na poesia. Publicou seu primeiro livro, Coisas do futebol manauara, em 2022.

 




 

 


3ª Menção Especial

Fátima Soares Rodrigues, Belo Horizonte/MG

 

 

ANGÚSTIAS, MARTÍRIO E ESPERANÇA

 

Angústias, Martírio e Esperança eram irmãs. As duas primeiras herdaram o nome após a leitura que a mãe fizera do livro de García-Lorca, “A Casa de Bernarda Alba”.  A mãe, criada sob o cabresto dos pais e, depois, do marido, trazia arraigadas tradições arcaicas tanto no seu jeito de ser quanto no de agir. Amarga, desamada e seca, nomeou as filhas com as suas agruras. O marido, após um acesso de cólera, infartou quando ela estava grávida da última. E, após enterrá-lo, descobriu-se dona da própria vida, então, ainda havia esperança. E ela chegou sete meses depois.

Em janeiro de 2020, Esperança chegou em casa para o rápido almoço, abaixou-se e pegou o jornal jogado no jardim de sua casa, irritando-se com o carteiro que não o colocou na caixa de correio, conforme era de praxe, e só o abriu, como sempre fazia, enquanto almoçava, para ganhar tempo. Mais uma notícia sobre o vírus covid-19, coronavírus, que atacava a China, desde o final do ano 2019, causando centenas de vítimas. Apesar de os números de morte crescerem, conforme notícia do jornal anterior, Esperança se fiou na esperança de que era na China, do outro lado do oceano, e ela mora no Brasil. Logo, lamentava-se pelas vítimas, mas não via possibilidade de que o seu cotidiano pudesse ser alterado.

Após o carnaval, hora de retomar o cotidiano, eis que aquilo que ela supunha impossível se impõe como dono e senhor da vida dos humanos: o coronavírus. E já entra varrendo parte da humanidade.  À medida que as notícias se espalhavam pelo mundo, e o número de mortos se avolumava, as casas, lojas, parques, shoppings, teatros e as fronteiras iam-se fechando também para as pessoas. E, então, o Brasil e vários países decretaram o isolamento social e irrestrito: as famílias deveriam se manter no lar e tudo que implicasse “de fora para dentro” deveria ser abolido.

As primeiras desavenças começaram ali: todos deveriam ajudar nas tarefas domésticas. Nessa hora, Esperança se sentia colada ao martírio, pois a válvula de escape, que seria sair para espairecer, estava totalmente fechada. Mas ela sabia que a paciência era a ciência mais considerada, além da higiene, cuidados, permitindo que o indivíduo não contraísse outras doenças, respirando fundo, engolindo a raiva, para expirá-la no silêncio...

Esperança começou a perceber que a família estava unida no trabalho de casa e unida dentro das quatro paredes, porém, cada um procurava seu quarto ao findar das tarefas e após as refeições. Era preciso que compartilhassem também de momentos descontraídos. E o baralho, depois de anos, saiu da caixa em que estava guardado e esquecido. Descobriram que jogar Vinte e Um, Mexe-Mexe, Escopa era muito gostoso e desafiador. Depois, foram se lembrando do jogo da forca, e do quebra-cabeça, guardado há anos, de cinco mil peças, que, coincidentemente, era um mapa mundial de todos os países, presente a um dos filhos. Tão grande que ocuparia a mesa de jantar, e, uma vez que, para poupar o serviço, já deixavam as panelas e travessas no fogão e nas bancadas, ocupar quase todo o espaço dela com o quebra-cabeça durante algum tempo, até montá-lo por completo, não atrapalharia. E assim o fizeram e, entre uma partida e outra, um comentário aqui, outro acolá, e, nessa interação, foram descobrindo e se descobrindo... Mas havia um personagem que não participava dessa descontração: Abel, seu marido. Embora, durante a pandemia, trabalhasse no sistema home office, participava de algumas reuniões on-line, não implicava que deveria permanecer conectado durante o dia e a noite, como sempre argumentava, nem que isso fosse capaz de alterar o seu humor de mau para pior, o que acontecia ultimamente. Era uma noite de sábado, ainda em maio, Esperança e os filhos decidiram que, naquela noite, terminariam a montagem do quebra-cabeça do mapa do mundo, já que grande parte já tinha sido concluída. Por volta das 23h30, Esperança colocou a última peça e resolveram dormir.

Abel estava diante do notebook desde antes do jantar. Há muito que era assim. Ele só se recolhia de madrugada, e Esperança sabia que não seria diferente naquele dia, e ela adormeceu e sonhou. O vento forte agitava a cortina na copa. Sobre a mesa, as peças do mundo começaram a se mover e uma inversão de países e continentes que mudavam de lugar no espaço causava um caos na ordem do universo. Cidades do Oriente Médio voaram para a América do Norte, e outras da Ásia foram parar na Europa. As da Europa invadiram a África, as da América do Sul se espalhavam na Oceania, enquanto outras tantas perdidas e ilhadas nos oceanos, e algumas mobilizadas no nada do mundo em uma mistura de raças, etnias, culturas e religiões, parecia que o mundo se desorganizava por um período de tempo, a fim de que todos os habitantes do planeta se aproximassem nas diferenças e se reconhecessem apenas como seres humanos habitando o universo.

Esperança despertou assustada. O relógio marcava mais de três horas da madrugada e ela se levantou, dirigindo-se para a copa, quando ouviu sussurros na sala. Parou no corredor e ouviu as palavras amorosas e eróticas que o marido pronunciava diante da tela do notebook. Encostada à parede, paralisou-se por alguns minutos não sabendo ao certo qual direção deveria tomar. Ir em frente e conferir se o quebra-cabeça estava intacto ou retomar o caminho do quarto para adormecer, esquecer e postergar para o dia seguinte o rumo certo que deveria tomar...

O domingo amanheceu sombrio. O sol nem tímido estava. Nuvens cinzas prenunciavam chuva e a temperatura caíra um pouco, embora ainda outono. Todos dormiam. Esperança tomou um banho, lavando também a alma. Na mesa da copa, repousa o quebra-cabeça montado, ladeado pelas janelas e cortinas em silêncio. Após coar o café, Esperança se assenta na cadeira, com a xícara na mão, diante do mundo, e viaja... Revê lugares na terra e no tempo, banha-se em mares de várias cidades, e percebe que a Terra é redonda porque a vida também é cíclica. Início, meio e fim; depois, início, meio e fim, e, como a natureza: primavera, verão, outono e inverno, e novamente primavera, verão, outono... Comparava as estações do ano às estações da vida humana: a primavera é a infância: alegria, encantamento, que não rompeu ainda a barreira de ser botão. É sinônimo de esperança. Aguarda o desabrochar das pétalas, para se tornar flor e abrir as portas para a juventude: o verão, que, tal qual a estação, sol forte e chuva ao mesmo tempo, há certo desequilíbrio em ser jovem, pois está-se descobrindo a vida e, assim, às vezes, falta o comedimento, e o jovem vive com intensidade para se lançar ao grande aprendizado de se tornar adulto. Então, chega ao outono, onde se instaura o comedimento, a maturidade. Já não somos tão afoitos, aprendemos a esperar, ganhamos experiência, e, assim, como a natureza, renovamo-nos a cada dia para, finalmente, chegarmos ao inverno, a última estação: da natureza e da vida. Chegamos à velhice. Nela, nossos frios são reais, afinal, estamos cada dia mais próximos do fim. Cumprimos nossa missão de existir. Espalhamos, na trilha da vida, nossos frutos: filhos, netos... Tal qual a natureza, cumprimos nosso ciclo, e, como ela é cíclica, permitiremos que outros ciclos se iniciem...

Na manhã seguinte, Esperança vai até o jardim de sua casa. Ao abrir a porta, onde a luz do sol não se infiltra, no chão frio de mármore, vê um louva-a-deus parado em direção à luz do sol. E ela pensa: o que ele está querendo me dizer?  Que, em meio à frieza, à dureza, à ausência, há um propósito. O sol, ainda tímido, começa a banhar os espaços, e ela busca um espaço para encontrá-lo. Caminhando devagar, observa as plantas, o céu e o silêncio que reina enquanto as pessoas ainda estão adormecidas. Tudo está em seu lugar. As plantas e flores vicejam no jardim e, suavemente, balançam ao molejo do vento suave, como em reverência ao Criador. Alheias ao caos que se instalou no mundo humano, elas cumprem o seu destino de sempre: nascer, florescer e morrer.

Esperança volta para dentro de casa e vê que o louva-a-deus se encontra no mesmo lugar, na mesma posição. Batizado de esperança, enfatiza que ela não desiste...

 

 

Fátima Soares Rodrigues nasceu em 1959, tem o curso incompleto de Letras-UFMG e premiações em verso e prosa no Brasil e exterior. É autora dos livros: Em Duas Estações – Diário da mãe de uma intercambista, Mazza Edições, 2002; de poesia: Mais que liberdade, livramento!, Telucazu edições, 2019 e de crônicas: O ônibus nosso de cada dia! – Telucazu edições, 2021, contemplado pelo Edital 14 da Lei Aldir Blanc.



 


Parte II -  Poesia: soneto e poema

 

 

Soneto

  1º Lugar - Vencedor

Elvira Glória Drummond Miranda, Fortaleza/CE

 

 

O GRITO

 

O grito, se de dor ou de euforia,

por certo, que extravasa um sentimento.

Quem grita, manifesta e denuncia

o que sua alma traz em seu sustento.

 

Em meio à imensidão e à calmaria,

destaca-se a partilha do lamento.

E mesmo uma explosão de alta alegria,

ressoa muito além, no firmamento…

 

Por vezes, é o semblante que nos fala.

A voz de quem padece hesita e cala,

fazendo do silêncio o seu escudo.

 

E o rosto, mapeando a dor intensa,

expressa muito mais do que ele pensa,

escuto, com clareza, um grito mudo!

 

 

Elvira Drummond: Prof. da Universidade Federal do Ceará e do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno. Sua formação abraça as áreas de Música e de Literatura, sendo licenciada em Artes, bacharel em piano e mestre em Literatura. Autora de vários livros publicados em ambas as áreas, além de premiada em vários concursos de poesia, trova e crônica.

 

 


 

2º lugar - Vencedor

Relva do Egypto Rezende Silveira, Belo Horizonte/MG

 

 

SERENATA AO LUAR

 

A plangente viola em serenata

oferta, à noite, os sons da nostalgia.

Traz, ao espaço, a lua cor de prata

as sombras e retalhos de magia.

 

Nas ruas da cidade tão pacata,

tomadas por acordes de harmonia,

flui a festa da vida que retrata

os momentos de sonho e fantasia.

 

Misturam-se passado com presente

na alegre serenata que cadente

convida toda gente para a rua.

 

A suave melodia traz saudade,

envolvendo as pessoas da cidade

o arpejar da existência à luz da lua.

 

 

Relva do Egypto Rezende Silveira, natural de Pedrinópolis/MG. Diretora de Ensino aposentada. Jornalista, contista, poeta. Conquistou mais de mil prêmios, inclusive no exterior . Escreveu o romanceiro : PEDRINÓPOLIS - UM CANTO NO TEMPO . Com o poeta José Fabiano, publicou o livro CONFIDÊNCIAS MINEIRAS – Trovas e Sonetos. Pertence a várias entidades literárias

 


 

3º lugar

Antônio Fernandes do Rêgo, Natal/RN

 

 

SONETO

 

Quero um poema forjado na fornalha,

Bem denso, que depois do abrasamento,

Se despoje no chão só a borralha,

E com carvão na pedra o risque atento.

 

Sacudo os verbos na arupemba ao vento,

Para voar toda a poeira e a palha,

Fica o verso do meu contentamento,

E vai-se o léxico que a rima encalha.

 

Que não careça mais que se tatue           

Um poema diáfano e impoluto,

Que linhas apuradas se debrue.

 

Que na água do alguidar por um minuto

Toda palavra vã que se flutue,

E que afinal sobre um soneto enxuto.

 

 

Antônio Fernandes do Rêgo é um Escritor, Poeta e Trovador potiguar. É membro da ATRN- Academia de Trovas do RN e da União Brasileiras de Trovadores; membro Fundador Correspondente da ALB – Campos dos Goytacazes (RJ); Embaixador Correspondente Internacional do Núcleo Acadêmico de Letras e Artes de Portugal; membro da Academia Mineira de Belas Artes.

 


 

 

3º lugar – Vencedor

Joaquim da Conceição Barão Rato, Beja/Portugal

 

 

RESPOSTA A SHAKESPEARE

 

P’ra mim “ser ou não ser” não é questão,

Questão é poder ser tal como sou,

Estar, de corpo inteiro, aonde estou,

Repudiar o pasmo, a inação.

 

A morte? Não! De todo! Essa é que não!

À morte, a que me devo, não me dou,

Há de levar-me tarde, mas não vou

Assim, sem avisar, de supetão.

 

Eu, Hamlet com notórias diferenças,

Alheio a julgamentos e sentenças,

Também luto entre sonho e realidade:

 

Mas “ser” é a resposta, decidido,

Enfrentar este mundo enlouquecido,

Morrer (se tem de ser) de má vontade.

 

 

Joaquim da Conceição Barão Rato, 82 anos, nascido na cidade de Moura, Alentejo, Portugal. Ex-bancário. Premiado, em prosa e em poesia, em centenas de concursos e Jogos Florais. Tem colaboração dispersa em coletâneas, jornais e revistas. Alguns livros editados. Escreve por necessidade interior e autogratificação pessoal. Os seus escritos levam vida dentro. Vida vivida e, tantas vezes, sofrida, na sua já longa existência. Que seja assim enquanto puder e Deus deixar…

 

 

 

 

 

1ª Menção Honrosa

Maurício Cavalheiro, Pindamonhangaba/SP

 

 

INSÔNIA

 

É madrugada, canta-me à janela

um passarinho de inefável canto,

talvez no anseio de espantar o pranto

que se formou desde a partida dela.

 

Abro a janela e para meu espanto

não vejo nada além da lua bela

cumprindo o seu papel de sentinela,

brandindo a escuridão de cada canto.

 

Mais uma vez me entrego à cama fria

e volto a ouvir a doce melodia;

porém, agora, noutra intensidade.

 

Ouvindo o nome dela no refrão,

volta-me o pranto e eu chego à conclusão

que o passarinho se chama saudade.

 

 

Maurício Cavalheiro, membro da APL – Academia Pindamonhangabense de Letras, da ABRASSO – Academia Brasileira de Sonetistas, e da UBT – União Brasileira de Trovadores, seção Pindamonhangaba. Autor de: Lágrimas de Amor, O Sapinho Jogador De Futebol, O Estuprador De Velhinhas & Outros Casos, Histórias De Uma Índia Puri, O Casamento Do Conde Fá Com A Princesa Do Norte, Um Caso De Amor Na Parada Vovó Laurinda, Vestígios de Um Grão de Areia, A Última Cabeça. Possui prêmios literários em prosa e poesia.

 

 

 

 

 

2ª Menção Honrosa

Marilene Guzella Martins Lemos, Belo Horizonte/MG

 

Ninho Antigo

 

Como o poeta buscando um ninho antigo

Ou como Proust atrás de “madeleines”

Juntei lembranças e levei comigo

Bem guardadas, incólumes, perenes.

 

Voltei onde deixara meus afetos

Mas onde estão os velhos casarões?

Os amigos? Só os filhos ou os netos

Restaram de um tempo de ilusões.

 

Enxuguei as lágrimas, mas parti convicta.

Passado é passado, nunca renasce

Ainda bem que dessa eu saí invicta.

 

Valeu a pena? Minh’alma não é pequena.

Espera que o mundo inteiro a abrace

Numa espera ansiosa, mas serena.

 

 

Marilene Guzella Martins Lemos é contadora de histórias, escritora e palestrante. Pertence à Academia Mineira de Leonismo, Academia Feminina Mineira de Letras, Arcádia de Minas Gerais, Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais e ao Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Autora de doze livros, inclusive de Contos de Fadas para público infanto juvenil, tem seu nome participando de várias antologias.

 

 

 

 

 

 

3ª Menção Honrosa

Antônio Francisco Pereira, Belo Horizonte/MG

 

 

VELHA FOTOGRAFIA

 

Quando me vejo num retrato antigo

- festa de formatura ou casamento –

e relembro quem estava comigo

muita coisa me vem ao pensamento.

 

A namorada, meu melhor amigo,

todos imortais naquele momento,

sem saber que o maior inimigo

já preparava nosso testamento.

 

É que o tempo, insidioso e rude,

nos rouba aos poucos força e juventude,

deixando as marcas de sua passagem.

 

Aí, quando olhamos um velho retrato,

concluímos que nossa vida, de fato,

será um dia apenas uma imagem.

 

 

Antônio Francisco Pereira, brasileiro, casado, nascido em 12/05/1946, natural de Queluzito-MG. Profissão: juiz federal aposentado, ex-procurador da Fazenda Nacional e ex-assessor no Supremo Tribunal Federal. Escritor bissexto, com alguns prêmios literários (poemas, crônicas e trovas) e um livro de poesia publicado de forma independente: POEXISTIR.

 

 

 

 

 

 

1ª Menção Especial

Arlindo Tadeu Hagen, Juiz de Fora/MG

 

 

AS BORBOLETAS DO MEU JARDIM

 

Adoro passear no meu jardim,

olhando a produção da madrugada:

uma rosa, uma dália ou um jasmim,

recém desabrochados em florada.

 

A Natureza é linda até parada

mas ganha movimento quando, enfim,

as borboletas vêm, em revoada,

dançando num bailado para mim.

 

No entanto as coloridas borboletas

não se fixam a nada e, quais cometas,

passeiam pelas flores sem demora.

 

Comparo o meu jardim às nossas vidas

pois, feito às borboletas coloridas,

passaste em meu jardim e foste embora.

 

 

Arlindo Tadeu Hagen nasceu em Juiz de Fora/MG em 01/08/64. É filho de Arlindo Hagen e Isaura Pinto Hagen. Casado com Terezinha de Fátima Ferreira Hagen.

É Engenheiro Civil e atua no ramo da Construção Civil. Pertence à UBT – União Brasileira de Trovadores, AJL – Academia Juizforana de Letras, ABRASSO – Academia Brasileira de Sonetistas, à SBPA – Sociedade Brasileira de Poetas Aldravianistas e ao IHGJF – Instituto Histórico e Geográfico de Juiz de Fora. Tem centenas de premiações em concursos de Trova, Sonetos, Haicais,  Contos, Crônicas e Poesias Livres. Publicou o livro “Retratos 4x7” e é co-autor de diversas coletâneas e antologias.

 

 

 

2ª Menção Especial

Paulo Cezar Tórtora

 

 

CORAGEM

 

Não peças a piedade de ninguém...

Padece teu pesar dorido e mudo,

por mais que o sofrimento seja agudo,

com a fé, que há de levar-te a um passo além.

 

Que seja o orgulho o teu sublime bem,

fazendo da coragem teu escudo.

Recusa toda esmola, sobretudo

porque sucede ao óbulo, o desdém.

 

Cultiva a alma forte e decidida

e enfrenta os mil embates dessa vida

com raça, nervos, fibra e coração.

 

E esteja atento, seja como for,

dos males o maior é o mal de amor

— e a chaga que mais sangra é a da paixão...

 

 

Paulo Cezar Tórtora nasceu na cidade serrana de Petrópolis (RJ). Tem várias premiações em concursos literários e publicou dois livros de poesia. É membro da ABP―Academia Brasileira de Poesia/Casa de Raul de Leoni (Petrópolis, RJ) e presidente da AML―Academia Madureirense de Letras (Rio, RJ).

Engenheiro, vive erigindo castelos de poesia, sonhando em construir um mundo feito de educação e arte. Quem sabe, um dia consiga...

 

 

 

 3ª Menção Especial

Carlos Alberto de Assis Cavalcanti, Carlos Alberto Cavalcanti, Arcoverde/PE

 

 

RESISTÊNCIA

 

Nos anais das histórias, pelo mundo,

há versões controversas sobre os fatos,

têm registros colhidos de boatos,

onde o falso se passa por profundo.

 

Os reis esbanjam a gula nos seus pratos,

o império torna o povo moribundo,

a lágrima da fome toca fundo,

enquanto, no palácio, arrotam os ratos.

 

Quando o dedo tirano, em riste, aponta

o vil decreto, ao povo desaponta,

por trazer, em seu bojo, tantos males.

 

Mas, ó povo, resiste, não te cales,

se o tirano poder diz que não fales,

brada, em alto e bom som, além da conta!

 

CARLOS ALBERTO DE ASSIS CAVALCANTI: Professor do Centro de Ensino Superior de Arcoverde – PE (área de Letras). Mestre em Teoria da Literatura – UFPE - Autor de: Itinerário Poético – poesias – Menção Honrosa no Concurso Nacional da Academia Pernambucana de Letras (2001); CINTILÂNCIAS POÉTICAS (coletânea,2019); várias premiações nacionais. Laureado com a Medalha Machado de Assis pela Academia de Letras e Artes Rio – Cidade Maravilhosa – Rio de Janeiro – RJ; recebeu Comenda concedida pela ACLAPTCTC; acadêmico Correspondente da: Academia Cachoeirense de Letras – Cachoeiro do Itapemirim – ES; Academia de Letras e Artes Rio – Cidade Maravilhosa, RJ; Academia de Letras e Artes de Ponta Grossa – PR. Delegado Municipal da UBT (União Brasileira de Trovadores).

 


 

Poema


 

1º lugar Vencedor

Francisco César Monteiro Gondar, Rio de Janeiro/RJ

 

 

 

ESTAÇÃO FANTASIA

 

Todo dia, a todo momento,

me vejo jogado ao relento

na estação, à espera de um trem

Anseio por dias, por meses.

Ouço os apitos por vezes

e, afinal, o comboio não vem

 

Nas mãos, carrego um bilhete.

No bolso, um pequeno lembrete

No peito, uma vasta bagagem

No entanto, quis o destino,

roubar desse pobre menino

o sonho de uma linda viagem

 

Desejos desde criança

que enchem de luz e esperança

a alma frágil e vazia,

mas o tempo conduz a agrura.

Castiga e molda a figura

de uma estação fantasia

 

O relógio marcha e não mente

meu coração bem ressente

o peso da idade que vem

Cansado, com olhos sem brilho,

perdido à margem de um trilho

de sonhos que passam além

 

É tarde para esperar

com rugas e mágoa no olhar

a vida consolidou

Amargo toda a tristeza

pois deixo a estação na certeza

que o  trem afinal já passou

 

 

Francisco Cesar Monteiro Gondar, Capitão de Longo Curso (Comodoro) da Marinha Mercante Brasileira. 48 anos de serviço no mar e em terra. Doutor Profissional em Ciências Navais.  Poeta, Contista, Compositor, Escritor membro da International Writers Association (IWA) com cinco livros publicados de Crônicas Marinheiras. Suplente do Juiz no Tribunal Marítimo,  Embaixador da IMO no Brasil (Organização Marítima  Internacional). Dr.h.c. Academia Brasileira de Belas Artes. 

 


 

2º lugar Vencedor

Rodrigo Ribeiro de Souza, Belo Horizonte/MG

 

 

VOZ À POESIA 

 

Muitas são as vozes

Que no mundo ecoam.

A voz silenciosa da razão

A voz que pulsa do coração.

 

A voz cubista de Picasso

A voz surrealista de Dalí

A voz sofrida de Kahlo

A voz de Tarsila em “Os operários”.

 

Tantas são as vozes

Que em todos os cantos soam.

A voz que mesmo calada fala

A voz de Gandhi

A voz da menina Malala.

 

Muitas são as vozes

Que canções entoam.

A anônima voz

A voz de fulano

A de beltrano

A voz do tropical Caetano.

 

Carregadas de tristezas

Transbordantes de alegria

Tantas são as vozes

Que dão voz à poesia.

 

 

Rodrigo Ribeiro de Souza - Natural de Itamonte/MG, licenciado em Filosofia pela PUC/MG e bacharel licenciado em Artes Plásticas pela UEMG/Guignard. Professor de Arte nas redes públicas de Betim e Belo Horizonte. Autor dos livros de poesia “Inverso do Silêncio”, Editora Viseu e “Cidade de Mim”, Editora Penalux.

 


 

 

3º lugar - Vencedor

Orlando Czerveny, Ponta Grossa/PR

 

 

O Beija-flor

 

Lá no alto da Colina,

na Fazenda da Campina,

junto a belo descampado,

de flores perfumado,

voava um Beija-flor.  

 

Em direção a uma roseira, 

plantada na estrada,

majestosa àquela beira,

e com raro perfume aquinhoada. 

      

Em voo rasante de investida,

rende-se ao perfume inebriante,

sorvendo o néctar no instante, 

em que beija a escolhida.  

 

Flores lindas, como Damas,

crescem ali, em várias cores, 

e ao lado dessas ramas,   

também espinhos protetores.

 

Em voo rasante, bem de perto,

destemido, rápido e incerto,  

descura-se então, o Beija-flor,

e tem o peito trespassado,

por um espinho encoberto,

ao redor da bela flor.   

 

Mortalmente então ferido,

debatendo-se em agonia,

abre as asas num abraço,

morrendo enlaçado àquela,

dentre todas a mais bela,

que beijara aquele dia .

 

 

Orlando Czerveny: Poeta, Contista e Escritor, residente em Ponta Grossa-PR. Formação Superior em Letras/Inglês UEPG-PR. Medalha de Ouro no Concurso Augusta Esteves de Poesia Brasileira, 1994  Litteris Editora-RJ. Seleção de Poesia Concurso "Qual a sua Saudade" - Academia Ponta-grossense de Letras e Artes 2020. Publicações em 10 Antologias Literárias, via Seleções Editoriais.

 


 

 

3º lugar - Vencedor

Rodrigo Roriz de Arruda Leite, Brasília/DF

 

 

OURO PRETO

 

Eu cantei na serenata

Um canto de esperança

Um consolo

Um canto de bonança

 

Na calçada

Na madrugada

Numa partilha

Um canto de tolerância

 

Um canto de saudade

Um pranto

Um prato de comida

Pro coração

 

Um vinho de alívio

Pra aflição

Um colírio de alegria

Pra solidão

 

Eu cantei na escadaria

Na pintura da imaginação

Um canto de amor

Uma paixão

 

Um canto que vira Ouro

Um Ouro que virá Preto

Um Preto que verá o Santo

Um fraterno Ouro Preto.

 

Rodrigo Roriz de Arruda Leite: sou engenheiro agrônomo e servidor público da ANVISA. Concilio esta atividade com a literatura, ao escrever poemas e me dedicar à leitura. Tenho um livro de poesias em fase de formatação, denominado “Trilhas do Lumiar”, além de me dedicar ao estudo da História do futebol brasileiro, em especial no período de 1918 a 1950. Sou casado com a pedagoga Maria Drianny e tenho dois filhos, Artur e Yasmin.

 



 

 

1ª Menção Honrosa

José R. Carvalheiro Neto, Casa Branca/SP

 

 

ORAÇÃO DO PÃO NOSSO

 

Pão nosso que nos céus brilha,

Que estais em cada missa celebrada,

E em cada coração sincero que te recebes.

Glorificado sejas este pão consagrado,

Que vem em nosso encontro, em nosso coração,

Que caminhas conosco nos dando tanto amor,

Assim nesta terra das dores e nos braços do Pai.

O pão nosso de todos os dias 

Dai-nos Senhor, a alegria de viver amando,

Ontem, hoje e sempre

Para que alimentados pela partilha do amor,

Possamos viver em Cristo.

Dai-nos também a paz, Senhor Jesus,

A paz de coração para corações.

Perdoai-nos nossos erros e tropeços,

Que possamos perdoar nossos irmãos,

E não deixe-nos desemparados,

nem tristes e livrai-nos de todos os males,

e das maldades para no final

possamos te dizer: amém.

 

 

José R. Carvalheiro Neto, natural de Casa Branca/SP, advogado de profissão e poeta de coração. Tenho livro publicado e vários trabalhos de direito nos sites jurídicos.

 


 

1ª Menção Honrosa

Felipe Morais Barbosa, Brasília/DF

 

 

BARCA DO INFERNO

 

Dos navios enferrujados, ouvem-se os gritos

Das portas das favelas, ecoam estampidos

Das rajadas de chicotes, subtraem-se gemidos

E o blindado pela mata...caça o negro foragido.

 

A incursão torna vermelho, o chão umedecido

Corpos pretos alimentam, o oceano apodrecido

O espetáculo mestiça, dor com a libido

Encapando os jornais...de bestiais desconhecidos

 

Jorram lágrimas de mãe, em meio ao vulto esquecido

Liberdade sofismada, em um presente oprimido

Seja o tronco, seja o aço, o futuro é repetido

A gente ordeira e virtuosa... não aceita o “pervertido”

Um monstro?

Um delinquente?

Um criminoso?

Inconsequente?!

Não, senhor de bem, é somente a nossa gente!

 

Felipe Morais Barbosa, brasileiro, nascido no dia 23 de dezembro de 1983 na cidade de Leopoldina – MG. Atualmente residente em Brasília – DF. Graduado em direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Pós-graduado em direito pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – Emerj. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.

 

 

 

2ª Menção Honrosa

Cíntia Aparecida do Nascimento, Cíntia Aparecida, Rio de Janeiro/RJ

 

 

Procissão

 

Era gente de toda sorte,

de toda cor e herança.

Uma gente que cantava glórias,

exalando temor e esperança.

 

Era gente de toda praça,

de casebre, de mansão.

Uma gente misturada,

iguais pela vela na mão.

 

Era gente rezando baixo,

implorando o fim das dores.

Gente humilde e gente esnobe,

unidas pelos dissabores.

 

Era gente descalçada,

mão no peito, olhar para o céu.

Era gente apaixonada,

flertando atrás do véu.

 

Era gente velhinha e frágil,

que mal ficava em pé.

Uma gente tão sofrida,

só escorada pela fé.

 

E era gente pequenina,

que como eu, era criança.

Uma gente fascinada,

que ainda segue a procissão na lembrança.

 

 

Cíntia Nascimento nasceu em Cambuí – MG e atualmente mora na cidade do Rio de Janeiro. É formada em Comunicação Social (Jornalismo) pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e em Pedagogia pela Unesa. Em 2016, lançou seu primeiro livro, “Coisas e Crônicas”,

pela editora Multifoco (https://editoramultifoco.com.br/loja/product/coisas-e-cronicas/).

Um de seus poemas, “Fragmento”, conquistou a segunda colocação geral no “Prêmio Cataratas de Contos e Poesias 2019”, promovido pela cidade de Foz do Iguaçu – PR.

 

 


 

2ª Menção Honrosa

Jacqueline Santos Magalhães

 

 

Saudades

 

Cada um abriga em si, saudades

Algumas são doces, pedaços de felicidade

E as recordamos com alegria, vivacidade

Outras são amargas memórias

E tornam-se lembranças melancólicas.

 

Sentimos muitas saudades

Saudade da aurora pastoril

Da pureza do imaginário infantil

Da tão sonhada liberdade juvenil

Ou de quem já partiu.

 

Ah, se pudesse voltar no tempo!

Não acumularia ressentimento

Velejaria sem leme, sem documento

Não economizaria planos

Regaria flores por engano.

 

A saudade é tudo o que nos resta

Fio de lembrança que adentra pela fresta

Onde ansiamos do parapeito da janela

Sempre que ela nos revela, aperta.

 

Revivê-la é andar por um jardim secreto

Mergulhado em dias de sol encoberto.

Movido pelo tempo brumado, gélido.

 

Matamos a saudade para reviver uma lembrança

Sentir as pernas trêmulas dos medos de criança.

Ou da brisa frígida ao fugir de carrancas.

Abrigamos a saudade para pulsar a esperança.

 

 

Jacqueline Santos Magalhães nasceu em 19 de julho de 1985 em Itaberaba-Bahia. É especialista em estudos Linguísticos e filológicos (UNEB-DEDCXIII), graduada em pedagogia (UNEB) e graduanda em Letras (UNEB). Atua como Professora na Educação Básica. Possui participações em diversas antologias poéticas. Em 2020 obteve o poema A independência da Bahia: Brado de liberdade publicado na Revista Estudos, do Instituto Anísio Teixeira (IAT) Edição Especial Prêmio Luís Henrique Dias Tavares. É membro da Academia Virtual de Escritores Brasileiros – AVEB, ocupa a cadeira de número 15.

 

 

2ª Menção Honrosa

Francisco Sinval Farias de Sousa, Fortaleza/CE

 

 

resistência

 

a casa é a de antes

tecida de taquaras e tabiques

 

em feitio de taipa       

abriga o dizer das coisas comuns

 

o relógio descalço

o curumim na parede

 

tudo exige fala do tempo

como reclama o açude das grandes chuvas

 

a vida desaba 

no ranger dos viventes

 

...

 

a casa é esse rosto

entramelado de nódoa

 

 

SINVAL FARIAS. Nasceu em 1977 (Fortaleza – CE). Mestre em Estudos da Linguagem pela UNILAB. Professor de Língua Portuguesa do IFCE. Gosta de escrever e faz desse ato uma forma de resistir. Deu corpo a poemas, contos e crônicas, alguns premiados em concursos locais, nacionais e internacionais. Possui textos publicados em coletâneas e revistas espalhadas pelas piçarras do mundo. Consta como autor dos livros Coisas de sala de aula e outras crônicas (crônica) e Depois de tudo a palavra (poesia).

 

 

 

 

2ª Menção Honrosa

Rogério Eduardo Alves, São Paulo/SP

 

 

Sonho camundongo

 

Na casa em que nasci

Mambembe

Tinha um poço sumidouro

sem fundo

que levava pra outro mundo

o menino vagabundo

 

Na casa em que eu nasci

Malungo

Tinha um poço profundo

sumidouro

que levava para o tesouro

o menino herói-besouro

 

Na casa em que eu nasci

Calunga

Tinha um poço?

nunca

tinha o olho de um menino

profundo

que sonhava outro mundo.

sonho camundongo.

 

 

Rogerio Alves é editor, escritor e letrista de canções. Publica textos, principalmente infantis, no instagram coisadecrianca_blog e no site coisadecrianca.org.

 


 

2ª Menção Honrosa

Maria Lucia de Moraes, Jacareí/SP

 

 

Meu Medo

 

Não tenho medo de envelhecer,

mas, sim, de viver da compaixão

de um bondoso coração, ou morrer

no asilo frio da imensa solidão.

 

Não tenho medo de envelhecer,

mas, sim, de ter os sonhos frustrados,

ver que a vida passou sem eu perceber

e viver, inevitavelmente, do passado.

 

Não tenho medo de envelhecer,

mas, sim, de perder as esperanças,

voltar a ser criança e adormecer

no vazio das minhas lembranças.

 

Não tenho medo de envelhecer,

mas, sim, de perder minha identidade,

de correr o risco de tudo esquecer

e apagar da minha vida a melhor parte.

 

Não tenho medo de envelhecer

mas, sim, de adoecer do grande mal,

minhas poesias não poder mais escrever

e aos olhos do mundo, não ser normal.

 

Não tenho medo de envelhecer

mas, sim, de me esquecer de você

quando o sentido da vida se perder

e da hora derradeira eu ficar à mercê.

 

 

Maria Lucia de Moraes: Natural de Jacareí, interior de São Paulo. Secretária Executiva e empresária no ramo de serviços de buffet, mais especificamente Catering em domicílio. A paixão pela arte de escrever sempre esteve presente na vida dela e recentemente passou a dedicar-se integralmente à essa atividade. Suas produções literárias estão classificadas em diversas categorias como contos, poesias, crônicas, textos humorísticos, prosas poéticas, tautogramas, acrósticos, orações, pensamentos, mensagens e frases.

 

 

 

3ª Menção Honrosa

Luiz Eduardo de Carvalho, São Paulo/SP

 

 

Intercurso

 

Dispo as palavras no leito da poesia,

afrouxo os laços, abro-lhes a braguilha,

desfaço seus nós de tantos sentidos,

escuto-lhes a voz e perscruto os instintos,

dedilho o metro e altero o ritmo

de sua íntima pulsação.

Em um beijo íntimo,

com a segunda intenção

de penetrar a fresta dos significados,

perco-me na interpretação

de seus códigos cifrados.

Deleito-me um bocado

com as tantas possibilidades

do acervo provado

de sua sonoridade:

gemidos e suspiros

de pura intimidade.

Arranhões e arrepios

na pele do papel reescritos

com a transparente tinta

dos humores que dela transpiram

aos tantos sabores que sorvo,

guloso em saciar a antiga fome

desse desejo sempre novo

que as entranhas me consome.

 

 

Luiz Eduardo de Carvalho. Foi professor, publicitário e assessor de imprensa, jornalista e gestor cultural nos âmbitos público, particular e do terceiro setor. Dedica-se exclusivamente à produção literária desde 2015, já recebeu mais de 60 prêmios literários e publicou: O Teatro Delirante, Retalhos de Sampa, Sessenta e Seis Elos, Frasebook, Xadrez, Quadrilha, Evoé, 22!, O Pirata Grilheta e os Dragões do Mar, Um Conto de Réis (e de Rainhas) e Crônicas do Ofício.

 


 


3ª Menção Honrosa

Wladimir Trevizani, São José dos Pinhais/PR

 

 

COMO EU NÃO TE CONHECIA?

 

Dura, leve

Intensa, vazia

De amor, de anarquia

És tu idolatrada poesia

 

De dor, de rancor

De despertar, de anestesia

De dama, de vadia

És tu idolatrada poesia

 

Do politizado, do mambembe

De cordel, do repente

De movimento, de apatia

És tu idolatrada poesia

 

Da chuva, da seca

Da tristeza, da alegria

Do silêncio, da cantoria

És tu idolatrada poesia

 

Me pergunto todo dia

Como não te conhecia??

 

 

Wladimir Trevizani, nascido em Curitiba, casado, pai da Sophia e do Arthur, poeta, compositor e professor de Geografia na educação pública do estado do Paraná.

Amante das manifestações culturais brasileiras, cinema, teatro e música.

 


  

3ª Menção Honrosa

Patrícia de Campos Occhiucci, Mogi Guaçu/SP

 

 

Deixar ir e deixar vir

 

Deixar ir o que já não cabe

E vir o que a alma deixa

No fundo, a gente já sabe

Vir amor, ir a velha queixa.

 

Deixar ir o apego mundano

Vir o bom acompanhamento

Passos longe do dano

Perto do salutar sentimento!

 

Deixar ir a matéria banal

Vir o que realmente eterniza

O supérfluo é sem sal

O importante, realiza!

 

Deixar ir o que não soma

Vir o complemento divino

Aquilo que tempo demais toma

O suave tenha olhar de menino...

 

Deixar ir o peso, as culpas

Vir a liberdade e o sorriso

Medo, sem procrastinar desculpas

Que façamos o que é preciso!

 

Deixar ir mágoas, falatórios

Vir boas amizades, leveza

Com os percalços provisórios

A fé e a melhora, certezas.

 

 

Patrícia de Campos Occhiucci: Professora, poeta, escritora e psicóloga, natural de Santo André, reside no interior de São Paulo, na cidade de Mogi Guaçu. Participou de algumas publicações da Psiu Editora, editora Ases da Literatura de Portugal, Editorial Eco Literário, Elemental Editoração e Artner. Também de lançamentos das revistas Tremembé, Alcatéia, SerEsta e Ecos da Palavra. É colaboradora da revista eletrônica BlahPsi.

 


 

3ª Menção Honrosa

Priscila Meireles de Sousa, Florianópolis/SC

 

 

Meus olhos

 

Onde me olham meus próprios olhos?

Qual verdade representam se ausentes em sonhos tortos?

Onde se escondem esses olhos meus que não consigo ver?

Como me faço pessoa sob olhos que não cruzam meu ser?

 

Qual espelho permite que os veja sem as nuvens de mim mesma?

Quais pinturas cruzam sem que me permitam sabê-las?

O que demonstram meus olhos da alma tímida que lhes sai em lágrimas?

O quanto de mim representam em lidas trágicas?

 

Qual brilho que ainda lhes é próprio nesta falta de chamas?

Quantas palavras acrescentam às frases que minha boca proclama?

Por que ainda resistem às minhas corriqueiras ilusões?

Em qual dia sucumbiram os olhos jovens de um passado de paixões?

 

Como extraem dos segredos alheios linhas tênues de confissão?

Por quais meios logram ser dois inteiros de um só ser em solidão?

Onde repousam quando me leva distante o pensamento?

Para onde ainda olharão estes olhos quase meus, até que cerrados sob o cimento

 

 

Priscila Meireles de Sousa, nascida em 26 de agosto de 1991, na cidade de Florianópolis, Santa Catarina, onde reside até hoje, é formada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pós-graduada em Direito Processual Civil, pela Faculdade Damásio, e Direito da Famílias e Sucessões, pela Faculdade Cesusc. Poetisa por amor desde criança, vê nas letras beleza e liberdade fundamentais.

 

 

 

3ª Menção Honrosa

Deivide de Sousa Oliveira, Fortaleza/CE

 

 

Mar de fora

 

O mar

é longe

daqui.

O mar

vai para onde

fugi.

 

O mar não espera novos

navios d’Esperança.

O mar não desatina em ondas

ou sereias

apenas em desesperar

novas naus

a partir de Portugal.

 

Vai longe

o mar.

Vai aonde

sonhar

Foi possível

mas não mais.

 

O mar...

O mar...

 

 

Deivide de Sousa Oliveira. Médico e escritor.

 

 

 

3ª Menção Honrosa

Cleonice Orlandelli Sper, Cléo Orlandelli, São José dos Campos/SP

 

 

“O mendigo e o poeta”

 

A manhã quente e abafada de um dia qualquer de verão, traz a cena que se segue, quase como uma oração.

 

Sob uma frondosa arvore, descansa exausto um passante, que já não crendo no bem, não pode dar o que não tem.

 

Abençoada seja a manhã, abençoada seja a árvore.

 

Ao seu lado em sono pesado, um cachorro em confiança cega, oferece ao mendigo, o que o mundo lhe nega.

 

A brisa zelosa em dança suave, refresca o homem que sozinho, ao repouso se entrega, após cansativo caminho.

 

Abençoado seja o cachorro, abençoada seja a brisa.

 

A borboleta indiferente, passeia sobre o corpo adormecido, enfeitando a vida pequena do pobre mendigo esquecido.

 

Os pássaros alegres ignorando a dor, cantam canção de ninar ao pobre homem que sofre abandono e desamor.

 

Abençoada seja a borboleta, abençoados sejam os pássaros.

 

A arte que passeia pelo Universo, banha de bênçãos a mente que cria, trazendo ao momento que constrange, um pouco de poesia.

 

O mendigo de história sofrida, prefere esquecer a ferida e foge no sono faminto, sonhando com outra vida.

 

O poeta que passa, enfeita o papel escrevendo a cena que presencia, transformando em arte, o triste cenário do dia.

 

Abençoados sejam,  a arte, o mendigo e o poeta.

 

 

Cléo Orlandelli é licenciada em Sociologia e Pedagogia com pós-graduação em Gestão de pessoas. É artista plástica na área da pintura e da escultura. É formada em Teatro Amador, tem dois livros publicados, é autora de peças de teatro e também escreve crônicas para jornais da sua região.

 


 

3ª Menção Honrosa

Andressa Lima, São Paulo

 

 

Refém

 

Quero silêncio,

quero sopro

e nostalgia.

 

Quero sossego,

quietude,

calmaria.

 

Mas vem a vida

e a rotina teima

em me pegar.

 

Serei barulho,

ventania,

folha no ar.

 

 

Andressa Lima é jornalista formada na PUC-SP em 2019, com pós-graduação em Gestão de Mídias Sociais (UAM) e especialização em Marketing Digital (Digital House). Com passagem pelo jornalismo, assessoria de imprensa e comunicação institucional, Andressa escreve para blogs desde a adolescência - hobby que chegou ao Instagram com o perfil @leiagarotaleia. É autora do livro-reportagem "Rompendo Silêncios", que reflete sobre o atendimento médico prestado a quem tenta suicídio.

 




 

3ª Menção Honrosa

Geraldo Ramiere Oliveira Silva, Geraldo Ramiere, Brasília/DF

 

 

MÁRIO QUINTANA E OS PÁSSAROS DO TEMPO

 

E desde o início estavas certo

Eles passaram e tu permaneces

Passarinho, com teus quintanares

Entoando versos desencantados

Junto aos outros pássaros do tempo

Por isso vos digo, poetas não morrem

Depois da vida, tornam-se poemas

Que pelas janelas voam livremente

 

Também quero ser pássaro igual a ti

Com asas de poesia e a bela plumagem

Das horas e dos calendários em espantos

Levado pelos antigos ares de infância

E pela feitiçaria que move os cataventos

Ser pássaro-poema a enganar relógios

Cantando a simples poesia do hermético

Nas salas de espera e quartos de hotel

 

 

Geraldo Ramiere (01/07/1981) é poeta/contista de Planaltina-DF e professor de História da SEEDF. Desde 2002 tem suas obras publicadas em forma escrita (periódicos, antologias e revistas literárias) e no meio virtual. Por várias vezes foi premiado em concursos literários e possuí o blog literário Céus Subterrâneos. Em 2021 publicou seu primeiro livro, Desencantares Para O Esquecimento (editora Viseu). Atualmente é membro Academia Planaltinense de Letras, Artes e Ciências (APLAC), entre outras entidades. Acredita numa literatura que liberta.

 


 

3ª Menção Honrosa

Heber Cleidson Brizola de Carvalho, Florianópolis/SC

 

 

Palavras

 

Qualquer palavra pode ser escrita 

Qualquer palavra pode ser verbalizada

Palavras podem ser ordenadas

Podem ser justapostas ou aglutinadas

Palavras podem ser desordenadas

Podem ser anagramatizadas ou criptografadas 

Elas servem para simplificar ou complicar

Servem também para biformizar ou não-biformizar

As palavras são usadas para adjetivar

Para comparar, para inferiorizar ou engrandecer

Também são usadas para relativizar ou generalizar

Palavras nomeiam, enumeram, exprimem

Definem, conectam, explicam e concluem

Palavras provocam, injuriam, difamam

maltratam, ofendem, agridem e violentam

As palavras também unem, elevam, acolhem

inspiram, agradam, acarinham e amenizam

Acima de tudo, as palavras são um fenômeno

Transmitem energia e sensações

Como em uma música sem som

Elas possuem o maior dom

O maior talento que existe

Um poder incomparável

Com qualquer outra

Força cósmica.

As palavras

podem

ser;

apagadas.

 

Heber Brizola, é natural do Rio de Janeiro, criado no Paraná e radicado em Florianópolis desde 2009. Entre 1997 e 2002, Sob o pseudônimo, começou a escrever seus primeiros poemas, mas somente em 2022 que ele redescobriu a vontade de escrever e entendeu que a história de nossas vidas pode até ser contada em narrativas, entretanto, será muito mais bela se for escrita poeticamente em versos.

 

 

 

1ª Menção Especial

Sady Carlos de Souza Júnior, São Paulo/SP

 

As ararinhas

 

Duas ararinhas pousadas

olhavam o Sol que se punha

no horizonte mais caladas

num telhado, em suas plumas.

 

 

Planavam noites a dentro

pleno sol das manhãs cedo

no verão, entre as floradas

em suas revoadas.

 

Com o vento no embalo

voando sempre ligeiras

caçoando o espantalho

por entre as palmeiras.

 

Voando a plenos ares

mais juntas nas alturas

nos campos, seus habitats

fugindo à captura.

 

O azul de suas penas

celestes se mesclavam

vestindo os poemas

sob o céu que imitavam.

 

Aos alaridos e poeiras

estas aves se amavam

dias, semanas inteiras

os coquinhos encantavam.

 

Agora falou uma delas triste

de não mais poder voar

com ela - que só pra ele existe,

foi uma bala perdida no ar.

 

Olhando saudosa o poente

falou a outra avezinha então:

"Você estará eternamente,

sempre vivo no meu coração!

 

 

Biografia literária:

·         Gaúcho de Caxias do Sul/RS, nascido em 18 de novembro de 1960;

·         Formado em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul;

·         Mestrado em Linguística pela FFLCH da USP.

·         Publicou o livro de dramaturgia: “Fiuuinn, O Último Aviso à Terra”. 2021;

·         Professor de filosofia/func. público da rede pública em São Paulo.

 


 

1ª Menção Especial

Fátima Soares Rodrigues, Belo Horizonte/MG

 

 

NATUREZA MORTA

 

O banco da praça

envolto em árvores

evoca saudades.

 

Do tempo em que o vento

ventila verdades,

o assento é verde.

 

Há séculos, o ar seco

domina a paisagem...

ausência e ferrugem.

 

Fátima Soares Rodrigues nasceu em 1959, tem o curso incompleto de Letras-UFMG e premiações em verso e prosa no Brasil e exterior. É autora dos livros: Em Duas Estações – Diário da mãe de uma intercambista, Mazza Edições, 2002; de poesia: Mais que liberdade, livramento!, Telucazu edições, 2019 e de crônicas: O ônibus nosso de cada dia! – Telucazu edições, 2021, contemplado pelo Edital 14 da Lei Aldir Blanc.

 



1ª Menção Especial

Carlos Brunno Silva Barbosa, Valença/RJ

 

 

Cantiga de esquina de amigo sem amor (Medieval do rio sem mar)

 

É outro quarto de hora

neste quarto sem lar

e as praias de outrora

navegam nos rios de cá.

É o sal no só dos olhos sem mar,

é tua imagem de novo a me escapar.

 

Ausência presente no orvalho da aurora,

és presente noturno na manhã que acorda,

dança solitária que a dois convoca inglória

serenata passada queimada pelo sol do depois

sem pois sem nós sem nos nem dois.

 

E eu bailo pálido com o fantasma de teus braços,

e eu te abraço frágil com a força e aço de um asmático

que não quer se perder, que não quer te perder, mas perde o ar

e, assim, perdido, sempre vem te encontrar, mesmo sem te encontrar

e eu vou te encontrar apesar de pesar sem pesar apesar de todo pesar.

 

É outro quarto, senhora,

neste quarto sem hora

e os meus rios sem lar

nadam pras praias de lá

E lá é só eu só com o advérbio adverso a te afastar,

é o teu mar conjugando de novo o velho verbo escapar.

 

Carlos Brunno Silva Barbosa (Barra do Piraí/RJ, 07/05/1979) passou a escrever quando morou em Valença/RJ. É professor público municipal em Teresópolis/RJ. Possui vários prêmios literários e gerencia o blog Diários de Solidões Coletivas.

 


 

2ª Menção Especial

Maurício Cavalheiro, Pindamonhangaba/SP

 

 

MATERNIDADE

 

Minha filhinha é um pacotinho frágil

de olhar perdido em um lugar qualquer;

o seu silêncio é enigma indecifrável

que há muito tempo anseio resolver.

 

Talvez passeie por jardins de outrora

onde estão vivos seus vitais segredos:

— de quando em vez de seu olhar evola

rio que colho na ponta dos dedos.

 

Talvez entenda tudo o que se passa

ao seu redor; mas sofra na prisão

porque a doença lhe tolheu a fala,

porque doença não tem compaixão.

 

Banho-a com rosas, noutra fralda a envolvo,

dou-lhe na boca refeições saudáveis,

pego-a no colo, a embalo com ternura,

faço-a dormir com canções salutares.

 

Ponho-a na cama. É noite. Eu a contemplo:

noventa idades tem minha filhinha.

Deus, obrigado, por me permitir

ser filha dela e ela ser filha minha.

 

 

Maurício Cavalheiro, membro da APL – Academia Pindamonhangabense de Letras, da ABRASSO – Academia Brasileira de Sonetistas, e da UBT – União Brasileira de Trovadores, seção Pindamonhangaba. Autor de: Lágrimas de Amor, O Sapinho Jogador De Futebol, O Estuprador De Velhinhas & Outros Casos, Histórias De Uma Índia Puri, O Casamento Do Conde Fá Com A Princesa Do Norte, Um Caso De Amor Na Parada Vovó Laurinda, Vestígios de Um Grão de Areia, A Última Cabeça. Possui prêmios literários em prosa e poesia.

 


 

3ªMenção Especial

Sofia Costa Leite, Campina Grande/PB

 

 

CADA UM NO SEU CONTO

 

A história toda começa

Em um reino muito distante

Nele vivia um rei

Com sonhos mirabolantes!

 

Resolveu fazer uma festa

Convidando os contos de fada

Capitão Gancho, Peter Pan e Cinderela

Ocupando a mesma sala.

 

Totó, Doroti e a Bruxa do Leste

Se olhavam desconfiados

Na esperança de não chover

Para molhar o Espantalho.

 

Perto da meia noite

Cinderela precisou sair

Subindo em sua carruagem

Dando adeus sempre a sorrir.

 

Chapeuzinho chegou contente

Ficou sem acreditar

O lobo estava sentado

Guardando o seu lugar!

 

Contando ninguém acredita

Que todos estavam por lá

O mais impressionante

Agora vou te contar!

 

Não houve uma só briga

Durante todo o festejo

Mas quando voltaram a seus contos...

Você já sabe esse desfecho!

 

Sofia Costa Leite .Sofia tem 8 anos de idade e nasceu em Recife – Pernambuco. Atualmente reside em Campina Grande – Paraíba e estuda na escola Maple Bear. Gosta de ler paródias e poemas e se encanta com os contos de fadas. Participou do concurso porque gosta de criar e reinventar histórias. Já participou de outros concursos: I Concurso de Poesia da Biblioteca Pública Castro Alves - Bento Gonçalves - RS (colocada entre os 5 melhores poemas da categoria infantil); II Certamen Literario de Encina Realas - Córdoba - Espanha (2o. lugar categoria Poema); Prêmio Espantaxim (Vencedora na categoria Poema).